The Beatles

Lembra dos discos do Dr. Ebbetts?

Durante vários anos, desde os anos 80, quando foram lançados os primeiros álbuns dos Beatles digitalizados em CD, os fãs se queixavam de uma certa falta de qualidade em comparação aos antigos LPs. O problema, que muitos consideram apenas preciosismo de audiófilos (aquela categoria de ouvintes que valorizam a qualidade do áudio tanto – ou até mais – quanto a qualidade da música), seria devido a uma mistura da precariedade da tecnologia da época com a falta de sensibilidade das pessoas envolvidas no processo de remasterização, gravação e lançamento das novas mídias. Muito se falou sobre isso, usando expressões como “som abafado” e “áudio achatado”.

Aí entra a sacada do Dr. Ebbett (ou dos Drs. Ebbetts, já que não se sabe quantas pessoas formam a equipe). Usando uma técnica chamada “needledropping”, eles pegavam álbuns em vinil de qualidade perfeita, digitalizavam, remasterizavam e prensavam em CDs, que eram vendidos por um preço levemente mais alto que os CDs oficiais – em alguns casos, muito mais caros. Mas compensava, tanto pelo capricho sonoro e gráfico quanto pelo ineditismo de alguns títulos “esquecidos” pela gravadora oficial dos Beatles. Esses discos faziam a festa tanto dos endinheirados, que compravam compulsivamente vários títulos, quanto dos “bicões” (como eu), que baixavam através dos torrents, blogs e P2P da vida.

Sempre envolto em mistério, o que se sabe é que os CDs da coleção eram prensados em pelo menos 3 diferentes empresas e diversas gráficas. Com relação às compras e envios, várias pessoas diziam ter comprado dos EUA, outras do Reino Unido. Até hoje não se sabe ao certo quem é o responsável. O mais próximo de uma “biografia” do cara é que ele teria decidido comprar toda a discografia dos Beatles, americana e inglesa, ainda em 1969 e as mantido em perfeito estado através das décadas.

As compras dos discos eram sempre feitas com pagamento à vista, o típico toma-lá-dá-cá. Ao que consta, os discos sempre foram entregues em segurança e tempo hábil, da maneira mais honesta possível.

“Eu pagava a um site nos EUA”, diz o colecionador e audiófilo gaúcho José Ruiz. “Era antes das Remasters de 2009, mas até hoje esses CDs são a referência da sonoridade da época, porque trazem os masters originais. Muita coisa mudou nas remasterizações de 2009, stereo e mono e na americana. Pra ouvir em CD o que o Martin e os engenheiros americanos da capitol fizeram… só nos Ebbets. As 2009 foram feitas por Giles Martin e a americana são outros caras”, defende ele.

O jornalista Cláudio Teran explica com mais detalhes a experiência: “A pirataria sempre foi um negócio nebuloso. Antes de haver os Torrents, a gente tinha que comprar os CDs físicos. Os meus Ebbetts vinham de um fornecedor na Itália. Mas não sei de onde ele pegava. Era engraçado, cada vez que eu comprava os CDs esse cara tava num endereço de e-mail diferente. Todos os meses ele mandava o novo endereço e avisava que partir daquela data X só receberia pedidos naquele determinado e-mail. Eu pagava mandando o dinheiro em dólar para ele, as notas dentro de papeis carbono para evitar serem identificados por scanners dos Correios. Ele recebia a grana lá, acusava o recebimento, e uns 15 dias depois os discos vinham. Era assim, mambembe a coisa, na base da velha confiança”. Mas nem sempre dava certo: “Tomei calotes também, de um fornecedor americano que recebeu a grana e nunca mandou os discos. Um holandês fez a mesma coisa. Mas o risco era parte do negócio. Hoje em dia ainda vendem CDs e DVDs piratas físicos mas pouca gente compra. Sai mais barato baixar”.

Além de toda a discografia oficial (De Please Please Me a Let It Be, passando pelo Past Masters) com sua qualidade inigualável, a coleção do Dr. Ebbetts também lançou vários álbuns extra-oficiais (bootlegs), até então inéditos para o grande público, como o Get Back (o álbum original compilado por Glyn Johns), First U.S. Concert, Last Licks Live (The Rooftop Concert) e New Year’s Day – The Decca Audition, Hear The Beatles Tell All (entrevistas) e Hollywood Bowl (ao vivo, com qualidade muito melhor que o oficial da época), sempre com capas e encartes caprichados e o mesmo padrão de qualidade de áudio.

Depois do lançamento da coleção oficial dos Beatles remasterizada, em 2009, aparentemente a relevância da coleção Dr. Ebbetts foi drasticamente reduzida. Apenas aparentemente. Alguns títulos do catálogo dos Beatles, que nunca foram relançados, como por exemplo, o Rarities, Rock’n’Roll Music e o Oldies But Goldies, continuaram em catálogo. O mesmo aconteceu com a coleção Mono e a coleção original dos EUA – que também foram consideradas datadas depois dos lançamentos oficiais. Ah, é bom lembrar que também foi feito um trabalho incrível com outros artistas, como Jimi Hendrix, The Who, The Monkees, The Byrds, Simon & Garfunkel, Neil Young, Bob Dylan, Led Zeppelin e Pink Floyd – que na época também tinham lançamentos oficiais com qualidade duvidosa, mas que também já foram devidamente remasterizadas com qualidade superior.

O músico André Katz, viciado em Dr. Ebbetts desde aquela época, revela algo interessante sobre a abrangência do catálogo: “o Ebbetts tinha até rips de discos brasileiros dos Beatles. Lembro nitidamente do Abbey Road mono, que era exatamente como estava no brazuca mesmo. Não era trucagem! Quem fez, tinha realmente uma cópia boa e convincente. A versão mono promocional do Yellow Submarine tinha uma ordem bem louca, o Get Back tinha duas mixagens lançadas”. Já José Ruiz se lembra de um lançamento em especial: “tinha uma versão muito legal do With The Beatles com gravações de carreira solo. Montaram uma versão onde todas as gravações são extraídas da carreira solo. É o único que dá pra montar assim”.

Com o lançamento oficial, as atividades do Dr. Ebbetts pararam. Mesmo consultando os fanáticos da época, poucos puderam ajudar a esclarecer o que teria acontecido. Será que a Apple processou o grupo? “Tudo o que ouvi dizer é que.. antes de ele fechar as portas, ele foi convidado a ir em Abbey Road pra ouvir os remasters de 2009, e ficou satisfeito com o resultado”, comenta André Katz. “Eu acho que não o processaram, só falaram que não tinha mais motivo pra ele fazer isso”, completa. De fato, na época, o site oficial passou a exibir apenas uma carta de despedida, dando conta que sua missão estava cumprida.

Em seguida, aparentemente, a “corporação” foi desativada e o site www.drebbetts.com saiu de cena. No entanto, ainda há um público saudosista, fãs que ainda hoje percebem algumas vantagens sonoras da coleção Ebbettiana, mesmo em comparação à discografia oficial. E tem os bootlegs, claro. Eles ainda são considerados o creme do creme da coleção.

Oficialmente não há mais atividades de lançamentos do Dr. Ebbetts, mas os álbuns continuam disponíveis principalmente em redes P2P. Em uma rápida consulta que acabo de fazer no meu P2P favorito, o Soulseek, encontrei dezenas de títulos, tanto da discografia oficial (UK, EUA e singles) quanto bootlegs – e também dezenas de álguns de Dylan, Led e Floyd, entre outras bandas, em mp3 e flac. O que mostra que o Dr. Ebbetts pode estar aposentado, mas não está morto e nunca será esquecido.

Por José Carlos Almeida

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  • Claro que uma carta da Apple para “cessar e desistir” deve ter colaborado na aposentadoria do Dr. Ebbetts, mas existem outros motivos:
    Um needledropper muito popular da internet, o PBTHAL, “denunciou” no fórum do BootlegZone que o DESS equalizava o áudio dos LPs, não reproduzindo o som fiel dos discos originais.
    Isso provavelmente passaria batido como frescura de audiófilo, não fosse o fato de que o DESS cobrava pelos CDs sem informar quase nada sobre o processo, desde equipamentos, softwares e técnicas, qual a prensagem exata que estava sendo reproduzida (informação que se adquire estudando o código de matriz, gravado a mão ou por maquina no sulco final do disco), etc.
    Isso meio que “queimou” a imagem dele entre os audiófilos.

    Outros needledroppers foram surgindo com o tempo e superando em qualidade o trabalho do DESS, dando informações mais precisas sobre o que fazem e disponibilizando tudo de graça.
    Claro, não existe a mídia física, mas o resultado geralmente é disponibilizado em áudio de alta resolução, 24-bit/96khz ou 24-bit/192kHz, ao invés dos limitados 16-bit/44khz de um CD.

    Em termos de relevância perante os remasters de 2009, os needledrops ainda são interessantes, já que os remasters não são reproduções fiéis das fitas originais nem dos LPs, usando técnicas mais modernas, como compressão de dinâmica mais agressiva, visando quem ouve música em dispositivos portáteis e ambientes barulhentos.
    Também foram corrigidos “defeitos” que muitos cresceram ouvindo como, por exemplo, em “I Want You (She’s So Heavy)” em que a distorção aumenta gradativamente. O remaster reduziu a distorção, que pelo estilo da gravação, soa intencional. Na mesma faixa foi removido o click quando o John mexe na chave seletora da guitarra.
    Se são queixas exageradas ou correções revisionistas, o ouvinte que sabe, mas os needledrops são opções.

    Dr. Ebbetts foi essencial aos fanáticos quando o catalogo oficial em CD era limitado principalmente às versões britânicas, em estéreo (ou no caso dos quatro primeiros álbuns, em mono), dois discos remixados (Help! e Rubber Soul) e qualidade de áudio que embora fosse decente, não impressionava.
    Hoje ele é um dinossauro extinto no próprio meio dos needledroppers.
    Descanse em paz.

Editor

José Carlos Almeida

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