George Harrison

George Harrison e sua mística viagem mágica

Ocorrida neste período de perdas, a morte de George Harrison nos faz recordar que apesar de os Beatles serem mortais, a sabedoria deles ainda nos toca.

Por Richard Lacayo

Ele foi o beatle calado apenas por estar ao lado de duas enormes personalidades extrovertidas e à frente de um sujeito que tocava bateria. Ele tinha muitas opiniões fortes – sobre a beatlemania, sobre a pobreza mundial, sobre seu direito à privacidade, sobre Deus – e as expressou de forma firme. Mas George Harrison certamente foi o beatle mais relutante, desejando sair quase ao mesmo tempo em que entrou. Várias vezes ele disse que sua maior sorte foi entrar para a banda e a segunda maior foi sair dela. Certa vez ele disse: “Ser um beatle foi um pesadelo, uma história de horror. Eu nem mesmo gosto de pensar nisso”. Ele realmente nunca pareceu à vontade naquele terno e corte de cabelo, nem mesmo no divertido “Os Reis do Ié, Ié, Ié” (A Hard Day’s Night), e nisto talvez ele tenha sido o beatle mais honesto, o menos convincente quando usava uma máscara. O comentário padrão é que George Harrison era um enigma, mas talvez ele fosse transparente: um guitarrista excelente, um ótimo compositor, um prodígio, um buscador e, acima de tudo, uma celebridade que odiava e temia a celebridade.

Harrison morreu na semana passada na casa de um amigo em Los Angeles aos 58 anos, perdendo sua última batalha contra o câncer. Em 1997 ele teve um tumor canceroso removido de sua garganta; no início deste ano ele foi operado de um câncer encontrado no pulmão e subseqüentemente recebeu tratamento para combater um tumor no cérebro, incluindo uma forma controversa de terapia de radiação no Hospital da Universidade de Staten Island em Nova York. “George era muito diferente de muitas pessoas que vêm aqui, pois ele não temia a morte”, disse Gil Lederman, um de seus médicos. “Para ele, vida e morte faziam parte do mesmo processo”. A morte de Harrison deixa apenas Paul McCartney e Ringo Starr como integrantes sobreviventes do “Fab Four”; John Lennon foi assassinado em Nova York em 1980.

Olivia, a mulher de Harrison, e o filho Dhani, de 23 anos, estavam ao lado dele no momento de sua morte, e, à medida que a notícia era divulgada, Harrison foi lamentado e elogiado por multidões que se reuniram do lado de fora dos estúdios Abbey Road, em Londres, e em Strawberry Fields, a área no Central Park em Manhattan do outro lado da rua onde Lennon foi morto, e por seus ex-companheiros de banda. “Ele era um sujeito maravilhoso. Ele era como um irmão caçula para mim”, disse sir Paul, que perdeu sua mulher, Linda, para o câncer de mama em 1998. Ringo Starr, o melhor amigo de Harrison na banda, disse: “Nós sentiremos falta de George pelo seu senso de amor, seu senso musical, e senso de humor”.

Tais louvores para George Harrison, que nasceu filho de um motorista de ônibus de Liverpool durante os dias mais sombrios da Segunda Guerra Mundial, estão de acordo com os tipos de milagres que os Beatles fizeram para si mesmos. A mais famosa das manobras do destino ligadas aos Beatles envolve um passeio de Paul McCartney a um festival de verão na Igreja de São Pedro, no distrito de Woolton, em Liverpool, em um dia quente de 1957, no qual se impressionou com uma banda de skiffle chamada Quarrymen. Por acaso Paul tinha trazido sua guitarra, com a qual também impressionou o líder da banda, um rapaz convencido chamado John Lennon, com interpretações roucas de canções de Eddie Cochran e Little Richard. Esse foi o grande momento cósmico, mas na história dos Beatles há um acontecimento anterior. Ele ocorreu em 1955. George Harrison, na época com apenas 12 anos, era um estudante pobre que viajava diariamente no ônibus de seu pai, indo da casa de sua família em Speke até o Liverpool Institute. Certo dia ele começou a conversar com um menino que estava um ano adiante na escola, o filho de um vendedor de algodão de Allerton. Paul McCartney era tão apaixonado por guitarras e astros do rockabilly americano quanto Harrison, e logo ele se juntaria ao jovem George para praticar à noite suas versões de “Don’t You Rock Me Daddy-O” e “Besame Mucho”.

Deixando de lado as muitas transformações pelas quais passaram os Quarrymen no final dos anos 1950 – os Moondogs, os Silver Beatles, e o número interminável de bateristas – nós chegamos ao Reeperbahn, o famoso distrito de cabarés de Hamburgo, Alemanha, no início dos anos 1960, com uma banda cuja linha de frente era Lennon-McCartney-Harrison porque Lennon, em sua sabedoria, optou por abrir mão de seu predomínio para formar o grupo mais forte. Uma forma de encarar os Beatles no início é como uma das mais toscas, rudes e melhores bandas punk de todos os tempos, ganhando entrosamento e aperfeiçoando seu som noite após noite, durante apresentações que podiam durar oito horas. “Nós espumávamos pela boca”, lembrou Harrison em “The Beatles – Antologia”, um álbum de fotos e recordações publicado no ano passado, “porque nós tínhamos que tocar todas aquelas horas e os donos dos clubes nos davam preludins, que eram pequenos tabletes. Eu não acho que eram anfetaminas, mas eram estimulantes. Assim costumávamos estar lá em cima espumando, mandando ver”. Em muitas ocasiões ele disse que os melhores shows dos Beatles ocorreram nos clubes de Hamburgo.

Harrison era o bebê da banda, e se a dinâmica interna dos Beatles fosse diferente, sua idade poderia ter lhe custado seu lugar na história. Durante a primeira temporada de cinco meses na Alemanha, as autoridades descobriram que Harrison, então com 17 anos, era jovem demais para trabalhar nos clubes noturnos de Reeperbahn. Elas o deportaram. Guitarristas podem ser substituídos, mas na época McCartney e Lennon gostavam de proteger o irmãozinho deles – os Beatles era uma família unida tanto quanto uma banda de rock – e poucas semanas depois os rapazes estavam novamente tocando juntos na Inglaterra. Soando melhores do que nunca, e muito melhores do que qualquer outra banda de Liverpool, os Beatles se tornaram lendas locais pelos shows que realizaram no Cavern Club. Eles conseguiram um contrato de gravação, substituíram seu baterista pelo talentoso Ringo Starr e tomaram o rumo do sucesso.

Mas para Harrison, muito mais rapidamente do que para os outros, a magia do momento tremeluziu e desapareceu. “A princípio todos nós pensávamos que queríamos a fama e tudo mais”, disse ele em 1988. “Pouco depois nós percebemos que a fama não era exatamente o que estávamos buscando, mas sim os frutos dela. Após a empolgação inicial ter passado, eu fiquei deprimido. Isto é tudo o que procuramos na vida? Sermos perseguidos por uma multidão de lunáticos de um quarto de hotel ruim para outro?”

Durante a grande conquista da América pelos Beatles em 1964, quando a primeira aparição deles no programa The Ed Sullivan Show atraiu impressionantes 73 milhões de espectadores e os transformou em fenômenos da noite para o dia, Harrison passou seus dias isolado no Plaza Hotel, com febre alta, enquanto os outros três integrantes do quarteto desfilavam pela cidade, surpreendendo a imprensa mundial com sua vitalidade e sagacidade. Então seguiram para Washington para o concerto no Coliseum diante de mais de 7 mil fãs que não paravam de gritar. “Foi horroroso”, Harrison contou para o biógrafo Geoffrey Giuliano. “Algum jornalista aparentemente desenterrou uma antiga citação de John de que eu gostava de “jelly babies” (doces em forma de bebês) e escreveu em sua coluna. Naquele noite nós fomos absolutamente apedrejados… Imagine ondas de balas duras chovendo sobre você. A toda hora uma atingia uma corda da minha guitarra, fazendo soar uma nota ruim enquanto eu tentava tocar. Dali em diante, para onde quer que fôssemos era exatamente a mesma coisa”.

Os ídolos da guitarra de Harrison incluíam não apenas o roqueiro Carl Perkins, mas também Andrés Segóvia, e ele se esforçou muito para dominar uma técnica complexa, precisa (suas experiências posteriores com guitarras de 12 cordas, sem contar a cítara, seriam enormemente influentes no rock). Só que naquele momento os freqüentadores dos shows não podiam ouvi-lo, e pior, nem se importavam. Harrison, que fez 21 anos após aquela primeira e breve turnê americana, perguntou aos demais durante o vôo de volta para casa: “Que estúpido é tudo isto. Tanta confusão para preparar, apenas para terminar como pulgas amestradas”.

Não demorou muito para os demais Beatles compartilharem sua opinião, e o último concerto público da banda ocorreu no Candlestick Park de San Francisco em 29 de agosto de 1966. (A cidade queria promover um desfile com o grupo, mas os rapazes disseram não à idéia. Eles estavam assustados com o empurra-empurra dos beatlemaníacos e pensaram não apenas no assassinato de John F. Kennedy, mas também nas ameaças de morte que os Beatles vinham recebendo após o recente comentário de Lennon, “nós somos mais populares que Jesus”). Com o fim das apresentações ao vivo, a banda, e Harrison em particular, passou a tratar de empreendimentos que considerava mais sérios. Seu casamento com Patti Boyd no início de 1966 alterou sua perspectiva, assim como o que ele chamou de “a experiência dental”, que, segundo ele, “nos fez ver a vida sob uma luz diferente”.

A experiência dental aconteceu em 1964. Os gerentes dos clubes de Hamburgo apresentaram os estimulantes para os Beatles, e Bob Dylan os fez se interessarem pela maconha. Mas em um jantar na casa do dentista de George em Londres, o anfitrião botou cubos de açúcar com LSD no café pós-jantar servido para George e Patti, John e sua esposa Cynthia. Em questão de meses, todos os Beatles estavam experimentando o ácido, e eventualmente Paul passou para a cocaína, John para a heroína e George se tornou fã de haxixe (pelo qual foi preso em março de 1969). A música que continuavam produzindo em estúdio mudou. Ela se tornou mais densa, viajante. O compacto “Strawberry Fields Forever” foi seguido pelo álbum seminal “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”, e os Beatles guiaram sua geração para o mundo psicodélico. À medida que Harrison começava a despontar como compositor, suas composições com arranjos requintados -“Within You, Without You”, “Love You Too”, “Blue Jay Way”- marcavam não apenas o uso de drogas, mas sua melodia e mensagem também mostravam o crescente interesse pela religião, cultura e música orientais.

Tal interesse, que se tornaria a força propulsora de sua vida, surgiu quando o roteiro do segundo filme dos Beatles, “Help!”, exigiu cenas de perseguição envolvendo vilãos hindus caricatos, e citaristas indianos foram trazidos para fornecer a música para as seqüências. George começou a brincar com o instrumento e a fazer perguntas. Isso levou à sonoridade exótica da balada “Norwegian Wood (This Bird Has Flown)” de Lennon e posteriormente a um aprendizado com o mestre citarista Ravi Shankar, que deu a Harrison não apenas lições sobre o instrumento, mas também sobre a vida. “Ele foi um amigo, um discípulo e um filho para mim”, disse Shankar, que visitou Harrison pela última vez na quarta-feira. “George foi uma alma bela e corajosa, cheia de amor, humor infantil e uma profunda espiritualidade. Nós passamos o dia anterior com ele, e mesmo naquele instante ele parecia em paz, cercado de amor”.

A famosa viagem dos Beatles para Índia em 1968, onde eles meditaram sob a orientação do Maharishi Mahesh Yogi, foi em grande parte obra de Harrison. Ele e Patti se tornaram devotos do líder religioso e arranjaram para que a banda passasse algum tempo no ashram do Maharishi na base do Himalaia. Outras celebridades – Mia Farrow, o cantor Donovan, Mike Love dos Beach Boys – também fizeram um retiro lá, e o episódio é lembrado como um dos momentos chaves, e dos mais peculiares, do Flower Power dos anos 60. Alguns dos inquestionavelmente belos frutos da escapada foram as canções compostas lá. John disse que compôs “centenas”; Paul voltou com pelo menos 15; e grande parte do “Álbum Branco” e do “Abbey Road” foi concebido em Rishikesh. George contribuiu com quatro canções, incluindo a ladainha pró-vegetariana “Piggies” e as belíssimas “Here Comes the Sun” e “Something”. Com mais de 150 versões gravadas, “Something” é a canção mais gravada dos Beatles depois de “Yesterday”, mas uma medida da obscuridade de Harrison dentro da banda é o fato de que Frank Sinatra costumava apresentar “Something” como sua canção favorita de Lennon e McCartney.

Tal confusão terminaria com a separação acrimoniosa da banda, anunciada em 1970. Para Harrison, a separação abriu a porta da liberdade artística. Ele acumulava canções havia meses – anos – canções que não encontravam espaço nos álbuns dos Beatles, repletos dos esforços de Lennon e McCartney. Naquele momento, em um trabalho que é a própria definição de magnum opus, Harrison lançou o álbum triplo “All Things Must Pass”. (O relançamento de 30º aniversário ocorrido no início deste ano apenas confirmou que essa foi a obra-prima de Harrison.)

A caixa chegou ao primeiro lugar em 1971, impulsionada por sucessos como “My Sweet Lord” e “What Is Life”. Harrison tinha encontrado um novo mentor espiritual, Srila Prabhupada, da Sociedade Internacional para a Consciência de Krishna, e sentimentos e sons hindus permeavam o álbum, estimulando a venda de cítaras e incitando o interesse de muitos ouvintes pelas religiões orientais. Logo após o fim dos Beatles, Harrison, a revelação, passou a rivalizar com Lennon e McCartney como ícone pop, e Shankar percebeu que seu amigo poderia ser o homem de frente perfeito para uma boa causa. Em agosto de 1971, Harrison e os amigos Bob Dylan, Ringo Starr, Leon Russell e Eric Clapton realizaram dois concertos no Madison Square Garden de Nova York para levantar dinheiro para o subcontinente indiano, devastado por enchentes e pela fome. O Concerto para Bangladesh estabeleceu Harrison como pioneiro na filantropia do rock, e estabeleceu o modelo para esforços futuros para arrecadação de fundos envolvendo celebridades como o Live Aid, o disco “We Are the World” e o Concerto para Nova York, promovido por Paul McCartney seis semanas atrás no Madison Square Garden, em auxílio às vítimas dos ataques ao World Trade Center.

Com George agora no centro, seus fãs passaram a conhecê-lo melhor. Ficou evidente que, na verdade, o beatle calado possuía a mesma sagacidade direta, sarcástica pela qual Lennon era conhecido. (Durante uma sessão de gravação dos Beatles com o produtor George Martin em 1962, este lhes perguntou: “Alguma coisa com a qual não estejam satisfeitos?” Foi George, e não John, quem respondeu: “Para começar, eu não gostei de sua gravata”). Harrison, com o sucesso individual, pareceu mais à vontade, e sua cordialidade ao longo dos anos 1970 transformou sua imagem na de um místico feliz.

Clapton, assim como Dylan, tornou-se um dos melhores amigos de Harrison, e é surpreendente o fato de a amizade deles não ter sido destruída quando Patti se tornou a sra. Clapton em 1979, dois anos depois de ela ter se divorciado de George e um ano depois de este ter se casado com a americana Olivia Arias. No final dos anos 1970, Harrison era um empreendedor tanto quanto músico. Ele abriu sua própria gravadora (a Dark Horse, em 1974) e sua própria produtora de cinema, a HandMade Films, que ele criou para ajudar seu amigo Eric Idle a concluir seu filme do Monty Python, “A Vida de Brian”. Outras produções da HandMade incluem a fantasia “Bandidos do Tempo” de 1981, e o drama “Mona Lisa” de 1986, que lançou o ator Bob Hoskins. O envolvimento de Harrison com o cinema também incluiu uma ponta no falso documentário de Idle, “All You Need Is Cash”, sobre os Rutles. Segundo George, a paródia contava a história dos Beatles “muito melhor do que os habituais documentários tediosos”.

Assustado até se tornar quase um recluso após o assassinato de Lennon por Mark David Chapman em dezembro de 1980, Harrison passou grande parte do seu tempo meditando, produzindo música, cuidando de jardinagem e assistindo a corridas de Fórmula 1 na televisão em Friar Park, sua extraordinária propriedade em Henley-on-Thames, e no seu refúgio na ilha havaiana de Maui. Ele saiu ocasionalmente para gravar e tocar com os Traveling Wilburys, um supergrupo que incluía Dylan, Tom Petty e outros. Mas várias batalhas legais cada vez mais tomavam seu tempo. Em 1976 ele teve de pagar US$ 587 mil (cerca de R$ 1,47 milhão) por “plagiar inconscientemente” o antigo sucesso dos Chiffons, “He’s So Fine”, na melodia de “My Sweet Lord”. Em 1991, ele processou o tablóide “The Globe” por difamação por ter publicado uma história o chamando de “Grande Fã dos Nazistas”. E em 1996 ele venceu um julgamento de US$ 11,6 milhões (cerca da R$ 29 milhões) contra seu ex-sócio na HandMade Films, Denis O’Brien, por não assumir a divisão acertada das dívidas da empresa. Naquele mesmo ano Harrison pediu para as autoridades investigarem uma série de ameaças de morte.

Não foi provada que alguma ameaça tenha vindo de Michael Abram, mas foi Abram, um obcecado pelos Beatles de 33 anos de um subúrbio de Liverpool, que, na madrugada de 30 de dezembro de 1999, passou pelos alarmes e proteções de Friar Park e invadiu a casa de Harrison. George levou uma facada no peito antes que Olivia nocauteasse Abram com um abajur. Harrison recuperou-se, e Abram foi enviado para um hospital psiquiátrico.

Apesar de Harrison ter conseguido sobreviver às pressões de ser um beatle e a um ataque de um maníaco, ele não conseguiu derrotar o câncer. Ele, entretanto, tornou a passagem para a morte mais fácil para si mesmo ao acreditar fervorosamente por tanto tempo em uma vida após esta. Sua amiga Mia Farrow disse na semana passada: “Uma das coisas mais inspiradoras foi sua busca durante toda a vida para conhecer o Deus dele. E se Deus existir, eu não tenho dúvida de que George terá um lugar perto dele”. Se ela estiver certa, Harrison está feliz. Ele pode ter tido medo de multidões de fãs, mas ele nunca teve medo de partir.

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