A morte de George Harrison encerra uma agonia de 30 anos, alimentada por fãs dos Beatles que sempre esperavam por uma volta do quarteto – nem que fosse no formato de um trio, após a morte de John Lennon. Fecha-se de vez a história da banda, com o desaparecimento daquele que nunca permitiu sua volta. Ofuscado pela parceria de Lennon e Paul McCartney nos anos 60, Harrison ressentia-se de sua solidão criativa e da falta de espaço para suas músicas nos discos dos Beatles.
Por muitas vezes McCartney fez o solo de guitarra em suas músicas, calando a guitarra do ex-colega de ginásio. Este ressentimento e o desprezo de Lennon incendiou o ego de Harrison a partir de 1969, quando desentendeu-se com McCartney durante os ensaios do projeto de disco e show “Get Back” e acabou sendo esbofeteado por Lennon ao reclamar da presença “daquela japonesa”.
Harrison chegou a sair dos Beatles por uma semana, puxando o tapete da banda e condenando o novo projeto a um sorrateiro concerto no terraço da gravadora Apple. Depois disso, Harrison chegou a recusar-se a tocar em The Ballad of John And Yoko, gravada para um single dos Beatles somente por Lennon e McCartney (Ringo filmava com Peter Sellers), mas por fim colocou dois de seus clássicos como as principais faixas do último LP Abbey Road: “Something” e “Here Comes The Sun”.
Harrison voltou às boas após o fim da banda, gravando e acompanhando Lennon em diversos projetos – até que, em 1971, quando intimado por Ravi Shankar para organizar o concerto beneficente para Bangla Desh, convidou Lennon para o show, mas vetou a presença de Yoko Ono no palco. Os dois voltaram a brigar e afastaram-se até 1974, quando uma nova discussão aconteceu no camarim de um show de Harrison – quando Lennon, vendo que a turnê do “irmão caçula” estava sendo malhada pela crítica, foi oferecer seu auxílio luxuoso e acabou sendo maltratado. Os dois nunca mais se falaram, principalmente depois que – ao publicar sua autobiografia “I Me Mine” em 1979 – George esqueceu-se do nome do fundador da banda que o fizera famoso nos anos 60.
Harrison tentou consertar a picuinha compondo a ode All Those Years Ago logo após o assassinato de Lennon, mas nem isso o fez mudar em relação a Paul McCartney – com quem nunca mais quis trabalhar. Apesar de ter-se juntado a Paul e Ringo – por interesses financeiros – na produção do documentário e dos CDs da série “Anthology” em 1995, Harrison exigiu que seu amigo Jeff Lynne (da Electric Light Orchestra) fosse o produtor das novas sessões, banindo da reunião o presumível George Martin.
Socialmente os ex-beatles falavam-se e frequentavam-se, mas profissionalmente havia uma tensão que inibia qualquer entrosamento – inicialmente em forma de quarteto nos anos 70, e por fim em forma de trio depois da morte de Lennon. Quando os Beatles entraram para o Muro da Fama do Rock’n’Roll em 1988, George e Ringo subiram num palco puxados por um discurso sarcástico de Mick Jagger, e acompanhados por Yoko Ono e pelos dois filhos de Lennon, Julian e Sean. George estava irritado com o “bolo” de McCartney e disse que não tinha nada a falar, “pois Paul é quem tinha ficado de trazer o discurso no bolso”, virando-se para o lado e apontando para Ringo, Yoko, Julian e Sean: “Lamento, mas isso é o que sobrou dos Beatles!”. A platéia riu e aplaudiu.
A paz de espírito e a saúde nunca fizeram de George Harrison um homem tranquilo, a ponto de ele realmente ter-se tornado arredio a muita coisa. Ao mesmo tempo que perdeu a primeira mulher para o amigo Eric Clapton, envolveu-se com a ex-mulher de Ringo Starr e, por fim, somente após muitos anos, encontrou na mexicana Olivia o sossego que permitiu a construção do lar, onde nasceu o primeiro e único filho Dhani.
A vida profissional também não foi das mais fáceis, apesar dos inúmeros acertos. Organizador do primeiro concerto beneficente da história do rock em 1971, ele levou quase 10 anos para ver o dinheiro arrecadado com a bilheteria e as vendagens do disco e do filme Concert for Bangla Desh chegarem à população faminta. Foi processado por um plágio subconsciente em “My Sweet Lord” e, ao compor “This Song” para brincar com a história, acabou sendo processado pela gravadora A&M por ter demorado a entregar o disco para lançamento.
Nem por isso perdeu o bom humor, sendo considerado por muitos o mais engraçado dos ex-beatles – e não é à toa que foi produtor executivo de diversos projetos ligados ao Monty Python. A saúde física é que não favoreceu, posto que – após ter enterrado a mãe, vítima de câncer – ele sucessivamente sofreu acidente de automóvel, teve uma séria hepatite, depois encarou um câncer na garganta, depois um atentado, em seguida um câncer no pulmão e por fim um derradeiro tumor maligno no cérebro.
* Marcelo Fróes é pesquisador da carreira dos Beatles e tradutor do livro “Paz, Amor e Sgt. Pepper”, do quinto beatle George Martin.
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