Wings (1971)
Vamos analisar o primeiro LP dos Wings, ou se preferirem, o terceiro solo do nosso bom e velho Macca, lançado em 8/12/1971, além do clima que envolveu a realização do álbum.
Em meados daquele ano, a situação de Paul era paradoxal: além do disco de estréia no ano anterior, o polêmico “McCartney”, ele havia acabado de lançar o single “Another Day” em fevereiro e o LP “Ram” em maio; Todos os três discos atingiram o primeiro lugar das paradas americanas e inglesas, demonstrando excelente receptividade do público. Porém, a crítica especializada estava distribuindo porrada, alegando que Macca estava compondo canções tolas e insossas, não reproduzindo nem um centésimo da genialidade apresentada nos Beatles.
Por ter sido o primeiro a assumir publicamente o fim do grupo (se ‘traiu’ John ou não será uma eterna discussão) e ao mesmo tempo aberto um processo contra os outros três beatles para a dissolução oficial dos negócios da banda, Paul acabou levando a fama de carrasco, o homem que definitivamente enterrou os Beatles, o ‘traidor’ dos amigos que com ele conquistaram o mundo e mudaram os rumos da música popular. Toneladas de bobagens! Primeiro, porque todos sabem que ele tentou durante dois anos – desde a morte de Epstein – manter o grupo unido, perdendo a batalha para o desinteresse de Lennon e de Harrison, embora tenha sido displicente em relação ao último, impedindo-o de gravar suas canções. Paul também não queria Allen Klein no comando dos negócios da Apple, como queriam John, George e Ringo, e sim Lee Eastman, o pai de sua mulher Linda. Se Eastman era um santo ninguém soube ao certo até hoje, mas o fato é que três anos depois, Klein estava processando e sendo processado pelos outros ex-beatles, o que significa que Macca não estava errado quando desconfiou de sua capacidade administrativa e de sua duvidosa honestidade.
Quanto às críticas implacáveis aos seus primeiros discos, temos de considerar que foram tendenciosas demais, pois “malhar” Paul tinha virado moda, até porque George havia lançado “All Things Must Pass”, provando que era um grande compositor, capaz de atingir os primeiros lugares das paradas (nos Beatles um dos argumentos de Paul para impedir que Harrison gravasse suas canções em lados ‘A’ dos singles era de que elas não eram tão comerciais quanto as suas) e John havia encantado os tais críticos com seu visceral e anti-comercial LP “Plastic Ono Band”, transformando-se numa espécie de porta-voz do rock “politicamente correto”. Mas nada disso quer dizer que em “McCartney” não existam clássicos, como o são “Every Night”, “Junk”, “Teddy Boy” (estas duas últimas compostas para os Beatles, como todos sabem) e “Maybe I’m Amazed”, uma das canções mais bonitas e emocionantes que já ouvi na minha vida!
Isso sem falar que o homem gravou tudo sozinho em seu estúdio caseiro, fato raro na música popular daqueles dias. “Another Day” é um delicioso número pop, uma melodia muito bem construída e elaborada, apesar da letra pouco inspirada (ele escreveu melhor sobre solidão feminina em “Eleanor Rigby”). E finalmente temos “Ram”, um magnífico e eclético álbum, com números de rock pesado (Smile Away, Monkberry Moon Delight, Eat At Home), hits (Uncle Albert/Admiral Halsey) e canções ainda remanescentes da época dos Fabs, como a lindíssima “Back Seat Of My Car”, cuja intensidade no final revive o clima épico do medley que encerra o “Abbey Road”. “Heart Of The Country” poderia ter entrado no Album Branco, enquanto “Dear Boy” e “Too Many People” (que abre o disco) são temas assombrosamente vigorosos, que trazem vocais perfeitos de Paul, em arranjos que sugerem tensão e emoções fortes, diria eu até sombrias, pois afinal foram as canções escritas como uma espécie de desabafo de tudo que Macca vivia na ocasião, em especial suas diferenças e mágoas em relação à John e ao fim dos Beatles. Este responderia ao que considerou como ofensas de Paul à sua pessoa em “How Do You Sleep?”. E por aí a coisa foi…
“Ram” foi muito bem produzido e gravado nos EUA, entre estúdios de Nova Iorque e Los Angeles, num longo período que o casal McCartney passou na América entre novembro de 70 e abril de 71. Entre os participantes das sessões estava o baterista Denny Seiwell, escolhido por Paul depois de muitos testes com vários músicos de estúdio americanos. Animado com a experiência de ter tocado com vários destes músicos durante as gravações e ensaios, McCartney voltou para a Inglaterra com a idéia de montar um novo grupo e voltar a realizar excursões, coisa que ele queria fazer desde 1968 com os Beatles, mas que os mesmos nem sonhavam em faze-lo; Ele então persuadiu Seiwell a mudar-se com a esposa para Londres, para que pudessem concretizar a idéia de uma nova banda. Macca telefonou para Denny Laine, cantor e guitarrista que conhecia razoavelmente de esporádicos encontros com os Moody Blues, ex-grupo de Laine que chegou a tocar em alguns eventos juntamente com os Beatles, e convidou-o para juntar-se ao novo conjunto.
Do dia 25 até o dia 28 de julho, Paul, Linda, Seiwell e Laine realizaram algumas sessões secretas de gravações nos estúdios da EMI. Um mês depois, no estúdio caseiro de sua fazenda em Campbeltown, na Escócia, Macca e sua “nova banda” completariam as gravações do que viría a ser o primeiro LP dos “Wings”, nome escolhido depois de algumas sugestões bizarras como “The Dazzlers”! A intenção de Paul foi gravar um álbum num período tão rápido quanto possível, no melhor estilo de Bob Dylan, para obter um resultado mais ‘espontâneo’. Depois de concluir as gravações, o quarteto passou a realizar esporádicos ensaios, pois Linda estava prestes a dar à luz a filha Stella, que nasceu no dia 13 de setembro. Neste ínterim, o atrito com os outros beatles prosseguiam; Paul recusou o convite de George para participar do Concerto para Bangla Desh, alegando “incoerência com tudo que estava sendo acertado na dissolução dos Beatles”, contribuindo ainda mais para sua fama de ‘alienado’, já que tanto Lennon (que classificava o ex-parceiro de fútil para a imprensa) quanto Harrison e até Ringo estavam envolvidos em campanhas beneficentes e se dedicando a temas mais politizados, declarando posições contrárias à guerra do Vietnã e condenando as injustiças sociais em suas letras, enquanto Paul escrevia “tolas canções de amor”.
Também seria processado pela Northern Songs e pela Maclen Music – assim como John – por suposto desvio de direitos autorais de “Another Day” ao casal McCartney, supostamente dificultando a divisão dos royalties entre os quatro beatles e para a Apple. Havia muito descaso em relação à gravadora, tanto que o único que compareceu ao recém-inaugurado estúdio do selo foi George. Paul estava tão avesso aos negócios da Apple que não queria que seu novo LP saísse pela gravadora. Como isso era impossível, ele exigiu que pelo menos a maçã não aparecesse no rótulo do disco, como era costume até então nos álbuns dos quatro beatles.
O bate boca pelos jornais entre a dupla mais criativa da música popular era cada vez mais pesado, com acusações e desqualificações mútuas que chegavam ao limite do bizarro, com Paul comparando as atividades do casal Lennon às do casal McCartney na música, chamando John & Yoko de falsos por criticarem suas habilidades musicais em “How Do You Sleep?”. Até o velho George Martin entrou na pendenga, declarando que ambos deixavam muito a desejar em seus trabalhos recentes! “Eu só quero sentar numa mesa com eles (ex-beatles) para assinar um maldito papel que termine com tudo isso de uma vez!” declarou um irado Macca à revista Melody Maker em outubro. Paul já havia formado sua própria empresa, a MPL Communications, para administrar sua carreira solo, tudo com a assistência dos Eastman. Foi em meio a todo esse clima confuso e belicoso que o álbum “Wild Life” foi lançado, em dezembro de 1971.
Os Wings e seu primeiro LP foram anunciados um mês antes numa badalada festa realizada em 8/11/71 no Empire Ballroom, Londres, com presenças de várias estrelas do pop como Elton John, Rod Stewart, Jimmy Page, Keith Moon, John Entwistle e Ron Wood, entre outros, além de cobertura generosa da imprensa em geral. Infelizmente, a qualidade do disco deixou muito a desejar, principalmente se o compararmos aos dois primeiros e claro, ao que sabemos do que Paul foi capaz de fazer nos Beatles. Na época, a crítica destilou veneno como de costume. A reação foi tão negativa, que o próprio Paul declarou anos depois que nunca mais havia ouvido o LP, considerando-o fraco também! Muitos consideraram as canções semi-acabadas, gravadas precipitadamente sem que estivessem de fato completas e com uma qualidade que pudesse corresponder ao conhecido talento do ex-beatle. E verdade seja dita: assim como já havia acontecido em “Ram”, os insuportáveis backing-vocals de Linda são uma cruz durante a maior parte do disco… e nisso, com certeza, o casal McCartney não ficou devendo nada aos Lennon; Até hoje, eu não consegui entender como Paul McCartney, tão exigente quanto às gravações, arranjos e execuções de suas músicas a ponto de fazer George e Ringo deixarem os Beatles algumas vezes devido ao seu perfeccionismo, permitiu que sua mulher híper-desafinada e sem uma molécula de musicalidade cantasse e tocasse teclados (!) em seus discos. Só pode ter sido amor! O problema é que o amor pelos ouvidos dos fãs foi para o espaço. E o mesmo pode-se dizer de Lennon com Yoko.
Enfim, se “Ram” tem grandes canções e disfarçou essa falha imperdoável, o mesmo não aconteceu com “Wild Life”, embora com o passar dos anos e com audições insistentes eu tenha podido identificar bons momentos no disco. Senão vejamos: “Mumbo” e “Bip-Bop” são descartáveis e inócuas, a primeira não passando de um réplica do que de pior se fazia de heavy-metal na época e a segunda lembrando uma brincadeira tola que Paul devia tocar só para suas filhas. “Love Is Strange”, de Baker e Smith e sucesso em 1956 com a dupla Mickey & Sylvia, foi o primeiro tema não composto pelo próprio Macca a ser gravado por ele em um disco solo, e aqui ganhou uma versão meio reggae com um resultado satisfatório, que agrada pelo balanço da execução. A música-título, que vem a seguir, foi composta como uma crítica ao extermínio de animais e à omissão do homem quanto a isso, despertando uma característica que acompanha Paul até hoje, que é a defesa do meio ambiente e a ecologia. Musicalmente, é um blues regular, que seria número fixo nas apresentações dos Wings durante dois anos. Torna-se um tédio, no entanto, porque é desnecessariamente longa.
A faixa que abre o lado 2, “Some People Never Know”, é um tema acústico bastante agradável, trazendo pela primeira vez ao LP a velha criatividade de Paul para desenhar melodias bonitas e singelas. Dedicada a Linda (“Ninguem jamais verá quanta fé você depositou em mim/e somente os tolos discordarão/algumas pessoas jamais saberão”) também mandava um ‘recadinho’ para John (“algumas pessoas conseguem dormir pela noite/ achando que este amor é falso”) – que insinuava ser o casamento de Paul uma relação superficial – a música só peca pela longa duração (mais de 6 minutos), assim como outras canções do álbum. “I am Your Singer” tem igualmente uma linda melodia, mas os vocais de Linda estragam o que poderia ser uma agradável audição. A melhor faixa do disco é, sem nenhuma dúvida, “Tomorrow”, um tema que segue os passos de “Maybe I’m Amazed”, com o mesmo peso e estilo vocal. Tal como “Maybe”, não virou single, inexplicavelmente. Para fechar este estranho e irregular LP, Macca incluiu uma canção composta e gravada durante as sessões de “Ram”, chamada “Dear Friend”, outro tema longo a base de piano, vocal e orquestra. A letra, curtíssima e interpretada tristemente numa melodia melancólica durante quase 6 minutos, é mais uma vez dedicada ao ex-parceiro John, demonstrando a incrível necessidade que ele tinha de conversar e resolver as mágoas com seu grande amigo: “Querido amigo/o que foi agora?/ será que esta é a hora final?/ou você é um tolo/ ou tudo isso é real”.
Apesar da qualidade inferior, da crítica negativa e da ausência de um single que puxasse o LP, “Wild Life” esteve entre os 10 discos mais vendidos nos dois continentes. Eu, particularmente, considero este trabalho uma linha divisória na discografia de Paul; Até “Ram”, ele trouxe canções ainda envoltas na aura dos Beatles, muitas delas compostas ainda para o grupo. “Wild Life” foi um experimento descontraído, uma busca por uma fórmula relativamente diferente que pudesse se adequar aos novos padrões de música pop do início dos anos 70, quando novos astros surgiram abrindo novas vertentes no mercado da música. O resultado mostrou-se pouco eficiente, e Paul passaria um bom período quebrando cabeça em canções realmente fracas e irrelevantes, até que aos poucos foi voltando a produzir grandes temas e discos de grande produção e impacto, chegando a ser com os “Wings” uma das maiores sensações dos anos 70 em termos de vendas e audiência. No ano seguinte, 1972, Macca acrescentou o guitarrista Henry McCullough aos Wings, e humildemente, passou a organizar apresentações de surpresa em universidades inglesas para pequenas platéias que sequer imaginavam que no intervalo das aulas um certo Paul McCartney estaria lá tocando novas canções com seu novo grupo. No repertório, muitas canções de “Wild Life” e nenhuma dos Beatles.
Ah, sim… no dia 29 de janeiro de 1972, Paul e John, mais as respectivas esposas, encontraram-se num jantar amigável, quando combinaram não mais se avacalharem através da imprensa.
Marcelo Sanches
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