Paul no Brasil 2010

Paul em Porto Alegre (Guilherme Lentz)

A VIAGEM

Hoje eu percebo que, intuitivamente, sempre soube que a vida era especial, mas achei que levava uma existência normal até os catorze anos, em 1989. Era feliz e tudo o mais, mas sentia que faltava algo. Foi quando ouvi os Beatles, e tudo mudou. Entre 89 e 2010, a participação dos Beatles foi tão enorme que eu não ousaria tentar descrever. Tudo de importante que aconteceu está ligado a eles de uma forma ou de outra.

O Paul, eu quase vi duas vezes. Em 89, estive no Maracanã, no histórico show do dia 21 de abril. Embora sinta alegria por ter participado daquele momento, nunca senti que tivesse visto o Paul. Beatlemaníaco ainda novato, com uma doença ainda não diagnosticada nem tratada, do outro lado do Maracanã, atrás de uma enorme torre de iluminação, vi pouco mais do que um ponto luminoso no que devia ser o palco. Em 93, achei que teria outra chance, mas a dias do show, com tudo arranjado, caí na cama com hepatite. Por muito tempo me ressenti por isso, mas, com os anos, diante de tudo que os Beatles me ofereceram, comecei a achar que fui muito abençoado, na verdade, e minha tristeza pelo show perdido esvaiu.

Mesmo assim, continuei com o sonho de ver o Paul. Nos últimos anos, ciente de que o tempo passa e de que o ritmo de viagens do Paul inevitavelmente teria que diminuir em um futuro não tão distante, comecei secretamente a fomentar o plano de viajar para o exterior para vê-lo. Foi quando, contra todas as expectativas e rompendo uma interminável história de boatos, os shows no Brasil se confirmaram.

Assim, quando eu pousei no aeroporto de Porto Alegre, na manhã de 6 de novembro de 2010, muita história vinha comigo. O coração estava cheio de emoções, mas estava leve.

Apenas algumas semanas antes, uma enxurrada de alegrias atravessara minha vida. Após o anúncio do show em Porto Alegre, veio a tensão da venda pela internet, a emoção da confirmação do ingresso, o agendamento de passagens e hotel, os ajustes para a ausência do trabalho, a partilha com meus amigos beatlemaníacos, em especial os colegas do grupo de discussão BeatlesBrazil, parceiros por mais de dez anos nessa história de amor.

A necessidade de buscar o ingresso no estádio me obrigou a antecipar meu voo para o dia 6, embora o show só fosse acontecer no dia 7. Essa acabou sendo uma ótima fatalidade, pois, na manhã do dia 7, Belo Horizonte amanheceu sob uma forte tempestade, e todos os vôos do aeroporto de Confins foram cancelados.

Mesmo voando tranquilamente, porém, a viagem era um problema para mim. Acostumado a ter os pés no chão, eu estava apavorado com a perspectiva de entrar em um avião. Para autorizar minha ida ao show, porém, minha esposa, porém, praticamente impusera isso, para que eu não me metesse pela perigosa estrada que leva ao sul do país.

Assim, meus pais fizeram a gentileza de me buscar às quatro da manhã e me levar ao aeroporto, ficando comigo até a entrada na sala de embarque. Por volta do meio-dia de 6 de novembro, após um voo muito emocionado, pousei em Porto Alegre para uma das maiores alegrias de minha vida. Seguro, com os pés no chão, deixei minha pequena bagagem no hotel e rumei para o estádio Beira-Rio, para buscar meu ingresso. Para o trajeto, usei a agora lendária linha de ônibus T5, que me levou desde o aeroporto até próximo ao estádio, cruzando a plana Porto Alegre, um espaço urbano muito diferente da minha montanhosa Belo Horizonte.

RETIRADA DO INGRESSO

No ginásio Gigantinho, ao lado do Beira-Rio, um enorme banner saudava o Paul. A atmosfera surrealista que antecedia a realização de um sonho que parecia distante havia apenas alguns meses se completava pela presença de incontáveis clérigos que rodeavam o ginásio. Não importava: eu só queria ter meu ingresso em mãos.

Na bilheteria, retirei sem dificuldade meu prêmio, impresso em um papel fosco, diferente do ingresso para os shows de São Paulo, que eu recebera em BH antes da viagem. Por ali mesmo, travei conhecimento com um conterrâneo, o Alessandro, que fizera o mesmo caminho que eu. Ele me reconhecera do avião e se aproximou para estabelecer contato. Logo ficamos amigos e compartilhamos muitas emoções até a volta para a casa.

Os contatos amigáveis, porém, não pararam por aí. Mal eu apertara as mãos do Adriano, um sujeito muito simpático, com um aspecto levemente indígena, cabelos muito pretos e pele morena, chegou até mim: “Qual é o seu nome?”. “Guilherme”, respondi, e ele: “Guilherme Lentz?”. “Isso mesmo”, falei. Antes que eu imaginasse ter sido descoberto por algum aluno em Porto Alegre, o sujeito já me abraçou cheio de alegria: “Lentz! Eu sou o JC!”. Acompanhado de ninguém menos do que o Ricardo Martinelli e seu colega de banda Gabriel, ali estava um sujeito muito presente em minha vida. Tanto o JC quanto o Martinelli participam comigo da BeatlesBrazil, uma confraria beatlemaníaca antiga, que funciona pela internet. Nunca havíamos nos encontrado pessoalmente, e, por isso, esse encontro foi um dos pontos altos dessa viagem. Nos próximos dois dias, eu ainda conheceria o João Lennon, o Zé Lennon e o mítico Marcelo Fróes, parceiros dessa mesma história e personalidades importantíssimas da beatlemania brasileira.

PAIXÃO NO EXTERIOR DO HOTEL

Por sugestão do JC, partimos do Beira-Rio para o Sheraton, onde o Paul se hospedara, para tentarmos ver nosso ídolo de perto.

Chegando lá, entramos por um acesso interno, através de um shopping, que nos levou diretamente ao saguão do hotel. Diferentemente de meus parceiros de aventura, porém, eu logo fui abordado por um segurança, que me encaminhou para trás das grades que haviam sido montadas no lado de fora especialmente para conter os fãs. Esse foi o começo de uma boa cumplicidade, já que, ao longo do dia, estabeleci um contato muito amigo com os seguranças, que, a partir de certo momento, tacitamente conferiram a mim a tarefa de abrir e fechar a barricada, quando algum veículo precisava entrar ou sair do hotel, sempre despertando nossa excitação, diante da possibilidade de que aquele fosse o carro do Paul. Nunca era. Na maior parte dos casos, os luxuosos carros que passaram por ali vinham buscar noivas, que deixavam o hotel sob os aplausos ou brincadeiras da multidão cada vez maior na rua, certamente criando fotos que vão adornar de forma especial seus álbuns de casamento.

Não posso me reclamar, pois ali passei um dia maravilhoso. Dezenas de fãs de todas as idades estavam junto ali, cantando, brincando, conversando e dividindo o momento. Algumas pessoas tocavam violão, outras seguravam pôsteres e cartazes. Integrantes de uma banda cover argentina apareceram trajados em uniformes de Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band e carregando réplicas dos instrumentos dos Beatles. Umas garotas gaúchas, percebendo meu evidente deslocamento naquela multidão loura, ficaram curiosas. “Tu vem de onde?”, uma me perguntou, com aquele sotaque muito bonito do sul. Tentei, sem sucesso, explicar sobre as montanhas e as alterosas. Nenhuma diferença cultural interessava ali, porém. Estávamos todos felizes só por estar ali, saudando entusiasmadamente uma mão que, de vez em quando, saudava-nos de alguma janela, deixando-nos curiosos para saber se era ou não a mão do Paul.

Em algum ponto da tarde, Wix e Brian Ray saíram e fotografaram os fãs, acenaram, sorriram, mostrando a simpatia que toda a equipe ostentou durante todo final de semana e nos preparando para o momento mais aguardado do dia.

Por volta, das 20:00, uma movimentação diferente finalmente começou. Os seguranças reorganizaram as barricadas, novos veículos apareceram, e, quando um reluzente esquadrão de batedores da polícia apareceu em suas motocicletas, tivemos a certeza de que o Paul iria sair.

Por volta das 20:30, em meio a gritos e alegria, o Paul atravessou a porta principal do hotel e se dirigiu a um utilitário preto. Na porta, ergueu o corpo sobre o veículo e acenou animadamente para a multidão. Nesse momento, de uma distância de aproximadamente cinco ou sete metros, avistei o Paul McCartney pela primeira vez na minha vida. Não, a visão daquele ponto de luz, do outro lado do Maracanã, em 90, não valeu. A visão durou apenas alguns instantes, mas aqueles momentos de vislumbre continuam se repetindo em minha memória. Fiquei muito feliz, e, enquanto o carro passava rente a mim para ganhar as ruas, aplaudi e fiz sinais na direção do vidro fechado, para manifestar minha excitação e na esperança de conseguir transmitir ao Paul um pouco do meu carinho. Depois, continuei acompanhando o carro com os olhos, enquanto ele cruzava as ruas de Porto Alegre, acompanhado por uma multidão, que tentava acompanhar o ritmo correndo.

Esse dia perfeito terminou com um jantar inesquecível no shopping adjacente ao hotel, em que acompanhei meus amigos beatlemaníacos de várias partes do país.

Feliz e saciado, finalmente voltei ao meu hotel, com as marcas daquele dia. A corrida de táxi foi em si uma aventura, pois o taxista, além de pilotar como se fugisse do inferno, abordou os mais desconfortáveis assuntos que se podem abordar com um estranho, como filmes pornográficos, a saia curta das meninas de Porto Alegre, o que eu faria se uma gaúcha me convidasse à infidelidade conjugal e assim por diante. O dia, porém, havia sido longo. Sem saber se devia temê-lo ou achá-lo pitoresco, permiti que me conduzisse até o hotel, onde tomei um merecido banho, telefonei para a família e dormi pesadamente, sonhando com as grandes emoções que chegariam com a manhã.

A FILA

Cedo, no domingo, acordei. Tomei um café reforçado, suficiente para que eu pudesse forçar meu organismo a ficar sem alimento até tarde da noite. Comi frutas, iogurte, pão integral, entre outros alimentos, tentando na medida do possível absorver todos os tipos de nutrientes de que pude me lembrar e assim garantir algum tipo de equilíbrio. Tendo conferido ingresso, documentos, dinheiro, uma pequena bolsa e meu já veterano gravador de shows, munido com três fitas, suficientes para o registro de três horas de show, fui para o já conhecido ponto do T5 e rumei para o estádio. No ônibus, conversei por telefone com minha família e fiz novas amizades com colegas fãs.

Tentei ser prevenido, levando pilhas, um caderno para anotações e até uma fralda, para alguma emergência sanitária ao longo do dia. Felizmente, não precisei desse dispositivo, mas ele parece ter sido bem útil para uma garota que estava ao meu lado no show. Tendo ouvido inúmeras e crescentemente desesperadas queixas dela, discretamente lhe passei a fralda e disse “Isso fica entre nós”.

Ao estádio, cheguei por volta de 9:00 da manhã. Muitas pessoas já estavam na fila, e havia um intenso movimento de vendedores de camisetas e petiscos. Fiz novas amizades ali, além de reencontrar muitos colegas da porta do hotel do dia anterior e vários de meus companheiros de BeatlesBrazil. A espera seria longa, mas estávamos juntos e animados. Eu não desanimei em nenhum momento. Desde o começo, minha proposta era a de ir para “a podreira”, como eu havia dito, ou seja, disposto a todos os sacrifícios para ver o Paul da melhor forma. Para isso, eu havia enfrentado as despesas, a saudade da família e o medo de avião. A verdade, porém, é que até aquele momento nada havia sido penoso: o ambiente era ótimo, as pessoas eram afetuosas e apaixonadas, a expectativa era a melhor possível. Ao contrário do que possa parecer, aquelas horas na fila foram de uma alegria enorme.

Por volta das 14:00 ou 15:00, a equipe do estádio começou a dar forma às filas, próximo aos portões do Beira-Rio. Uma revigorante sombra começou a nos abençoar, após um dia magnífico em Porto Alegre, com um céu de um azul intenso e sem uma nuvem no céu – ou melhor: com uma nuvem no céu, o que me levou a brincar com o JC, dizendo que estávamos sob a capa do Live Peace In Toronto. Aviões escreviam no céu o nome da “Oi”, patrocinadora do evento. Helicópteros sobrevoavam a área a todo instante. Mais e mais pessoas chegavam. A festa se aproximava.

Talvez fosse 16:00, pouco menos ou mais, quando ouvimos os inconfundíveis acordes daquela Gibson Les Paul. Era o Paul entrando no palco para a passagem de som. Sabíamos que alguns colegas nossos haviam feito um gasto extra para comprar o ingresso vip, que dava acesso ao soundcheck e, claro, estávamos todos muito invejosos. Foi uma linda surpresa, porém, quando nos demos conta de que dali mesmo poderíamos ouvir o tão sonhado ensaio.

Por cerca de uma hora, Paul conduziu a banda por um repertório exclusivo, repleto de pérolas que não veríamos no show. “Matchbox”, uma versão mais blueseira de “Blue suede shoes”, “Comin´ up”, “Magical mistery tour”, “C´moon”, “Celebration”, “(I want to) Come Home”, “Don´t let the Sun catch you crying”, “Everynight”, “I´m looking through you”, “I´ll follow the Sun”, “San Francisco Bay”, “Dance tonight”, “Something”, “Bluebird”, “Yesterday” e, finalmente, “Lady Madonna” calaram boa parte da multidão do lado de fora do Beira-Rio, que se concentrava na audição daquelas joias, eventualmente aplaudindo as performances, como se de fato o show já tivesse começado. O repertório dava espaço para guitarras, madolin, ukelele, violão, baixo, piano, claramente criando a oportunidade para que cada instrumento no show fosse testado. Na fila, um desavisado perdia a glória com fones de ouvido enfiados em sua orelhas.

Muitos, porém, pararam, mas não se tratava apenas de escuta. O silêncio, naquele momento, já era diferente; um silêncio introspectivo, respeitoso, reflexivo, contido, emocionado. Muitos, na fila, viviam o transbordamento de um amor, de um sonho, de dez, vinte, trinta, quarenta anos. Vidas inteiras convergiam naquele instante em direção aos portões do Beira-Rio, já guardados, àquela altura, por cerca de vinte funcionários encarregados da revista e do recolhimento dos ingressos.

Pouco depois das 17:30, os portões foram abertos, e corremos para dentro do estádio, em busca do melhor lugar.

ANTES DO SHOW

Seguranças uniformizados delicadamente desencorajavam a corrida enquanto entrávamos exultantes. Era linda a visão do Beira-Rio. O maravilhoso e enorme palco trazendo todos os instrumentos cobertos por uma malha prateada brilhava sob o sol ainda forte daquela tarde de Porto Alegre, em uma perfeita combinação com a pintura vermelha e branca do estádio. Os felizardos compradores do pacote HotSound, que dera direito a presenciar a passagem de som, já se encontravam em frente ao palco. Cheguei a tempo de ficar junto deles, em um lugar realmente excepcional. Havia calor e luz, mas nada incomodava. Estar ali colocava o corpo naquele estado de funcionamento em que todos os incômodos cessam. Muitas pessoas se espremiam nas melhores posições, e, claro, alguns espertinhos sempre tentavam se esgueirar por baixo de nosso braço. Em geral, acho que não vale brigar por vinte ou trinta centímetros de maior proximidade ao palco, mas, naquele dia, resolvi que só me moveria se fosse para frente. Assim, de empurrão em empurrão, cheguei a um ponto bem próximo, praticamente em frente ao microfone do Paul.

Pessoas falavam. Em um momento surreal, alguém me cutucou no ombro: “Você é o Guilherme Lentz?”. Tratava-se da amiga de uma aluna muito querida, e eu fui reconhecido em pleno estádio do Paul McCartney! Helicópteros sobrevoavam o local. O singelo aviãozinho vermelho que sobrevoava Porto Alegre desde a véspera continuava carregando sua mensagem: “Welcome Paul McCartney”. Pouco a pouco, a sombra avançava sobre a pista, enquanto, na marquise sobre a arquibancada, um homem solitário nos oferecia sua silhueta, desenhada pelo pôr do sol atrás do estádio. Com tudo já muito lotado, o valente Gabriel de Vitória deixou o posto que conquistara com tanto sacrifício para buscar água. Da platéia, pude ver membros da equipe do Paul manuseando vários instrumentos, inclusive o lendário violão Epiphone em que “Yesterday” foi composta e gravada e que tanta participação teve na história do Wings. Reparei que ele é diferente, com a madeira mais clara do que parece pelas fotos. Só a visão daquele instrumento histórico teria feito tudo valer a pena. Enquanto as horas passavam, eu tentava absorver o momento e me colocar em condição de usufruir da enormidade do sonho que eu estava prestes a realizar.

Uma trilha tocara durante toda a tarde, composta principalmente por remixagens de clássicos do Paul, em sua maioria extraídas do álbum “Twink Freaks”, como “Check my machine”, “Silly Love songs”, “Say, say, say” e versões dançantes de “No more lonely nights”. Chegou, porém, o momento em que as luzes do telão se acenderam, e esse som parou. O sol não estava mais visível, mas ainda havia luz natural.

Começou, então, o show de abertura. Isso foi um pouco surpreendente. Inicialmente, havia sido divulgado que a dupla Kleiton & Kleidir faria a abertura. Um dos dois chegou até a publicar um texto muito bonito, falando sobre a emoção de usar o palco do Paul. Quando cheguei a Porto Alegre, porém, havia a notícia de que a abertura fora cancelada. Ao longo do final de semana, porém, surgiram rumores de que um grupo local de música eletrônica havia sido escalado para o trabalho. Esse era de fato o caso. Não tenho afinidade com música eletrônica e honestamente não vi no trio, composto por um saxofonista, um DJ e um guitarrista, nenhuma virtude especial que justificasse o prêmio de subir naquele palco. Aparentemente, o público gaúcho experimentou sentimentos parecidos, pois não teve pudor em aclamar os artistas com gritos de “Queremos Kleiton e Kleidir” e outros coros irreverentes. A atmosfera, porém, manteve-se alegre e leve durante todo o tempo e, após uma apresentação que tentou misturar o eletrônico e o elétrico, com clássicos do pop e do rock remixados, o trio deixou o palco, dando a deixa para nós, na plateia, sabermos que momento tão esperado estava se aproximando.

O SHOW

Pouco antes, talvez, das 21 horas, os telões laterais começaram a exibir uma chuva de imagens com a trajetória do Paul, privilegiando os primeiros anos; o sistema de som jogava gravações dele e versões covers inusitadas dos Beatles. Todos sabíamos que após aquela sequência o show teria início. A pulsação se acelerava.

Não sei dizer muito bem o que aconteceu em seguida. Houve gritos, a luz do palco estava acesa. Eu tentava manter o foco e me preparar. Em meio à gritaria, parei um segundo, abaixei a cabeça e fiz uma prece em agradecimento. Muitas pessoas contribuíram para que eu estivesse ali naquele momento, e quis dedicar um pensamento a todas elas. Quando me dei conta, tinha o Paul diante de mim, empunhando seu Hofner e trajando calça preta e blazer roxo. Ninguém atribuiria a ele os 68 anos de vida. Sorridentes, Rusty, Brian, Wix e Abe estavam no palco também, saudando a plateia. Eu não me continha de emoção, e tive a impressão, fantasiosa, obviamente, de que o Paul me notara em meio ao público.

Para minha alegria, os tão meus amigos acordes iniciais de “Venus and Mars” começaram a soar pelo estádio, enquanto Paul se dirigia ao microfone, descrevendo a cena diante de si e apontando graciosamente para o céu ao anunciar: “Venus and Mars are alright tonight”.

Seguiu-se o medley de abertura, com a arrasa-quarteirão “Rockshow” e “Jet”, duas canções que fazem parte de minha vida há tantos, tantos anos. Eu nunca poderia sonhar que as testemunharia assim, diante de mim, em todo o seu vigor. Minha fantasia continuava; parecia mesmo que, em alguns momentos, o Paul olhava diretamente para mim. A plateia estava enlouquecida. Alguns choravam também, alguns berravam, alguns tentavam cantar, sem, é claro, alcançar as altas notas que a garganta do Paul, abençoada pelo tempo, continua produzindo, sem sinal de dificuldade.

“Oi! Tudo bem?”, Paul disse, como se precisasse ganhar a plateia. “Boa noite, Porto Alegre! Boa noite, Brasil!”, continuou, e três batidas do chimbau de Abe trouxeram “All my loving”. Brian tocava a maravilhosa guitarra branca, já tão conhecida de vídeos e fotos. “All my loving I will send to you”, cantava o Paul, e eu pensava nele, na banda, na minha família, nos meus amigos, nos meus companheiros de show. Dez, vinte anos para mim; quarenta, cinquenta, para outros. A vida de todo mundo estava ali. “Ah! U-hu! O Paul é gaúcho”, a plateia comemorava.

Realizando um desejo tão impossível que eu nunca ousara sonhar, Paul então levou a banda por uma de minhas canções preferidas do Wings, “Letting go”. “I feel like letting go”, dizia o refrão, e, entre uma das repetição, Paul provocava: “What about you?”. Nós também, Paul! Àquela altura, todos já estávamos completamente entregues ao momento. Em seu momento como solista, Brian debulhava sua guitarra, e a imagem dos três, no centro do palco, era magnífica.

Nesse momento, algo misterioso aconteceu. É fantasia, eu sei. Mas aconteceu. Mais do que em outros momentos, tive a nítida impressão de que o Paul tinha me capturado na plateia. Ele olhou fixamente em minha direção, sem chance de erro, e, como eu obviamente não poderia acreditar nisso, ele piscou firmemente para mim, sem possibilidade de engano, como se quisesse mesmo me dizer “É isso aí, cara; eu estou vendo você. Let it go!”. Sei que provavelmente essa experiência foi fruto da minha excitação e alegria do momento. No palco, é difícil para o artista visualizar qualquer pessoa, com tantas luzes e agitação. De qualquer forma, o simples fato de eu ter me sentido notado já valeu para mim. O Paul é o artista que canta para cada pessoa.

“Esta noite, vou tentar falar em português. Mas vou falar mais em inglês”, Paul contou. Como professor de português com experiência no ensino da língua para estrangeiros, fiquei pensando em quem teria sido o sortudo responsável por ensinar aquelas falas ao meu herói. Eu teria condições emocionais de realizar esse trabalho? Não sei.

Veio “Drive my car”. A emoção me volta, intensa, como se eu estivesse lá de novo, enquanto escrevo. Tinha saudade da minha família, que ficou em Belo Horizonte. Liguei para casa. Nem sabia quem tinha atendido, mas deixei o telefone para eles ouvirem. Eu estava muito feliz. “Não quero que isso acabe nunca”, pensei.

“Highway”, em um andamento ligeiramente mais lento do que o usual, veio em seguida, em um festival de energia. “Let me roll it”, uma das preferidas aqui em casa, minha querida “The long and winding road”, “!985”, “Let´em in”, “My Love” e liguei para casa de novo. Cada uma dessas canções onipresentes na minha vida. De cada uma tirei lições, com cada uma vivi momentos. Cada uma apresentei ou testemunhei em incontáveis shows imaginários, mas agora era real. O som do baixo Gibson de Brian me encantava. Paul pegou o violão e tocou mais uma de minhas canções preferidas, “I´ve just seen a face”, cuja introdução eu discutira com o Gabriel de Vitória apenas algumas horas antes.

“And I love her”, uma canção plantada na raiz de minha história com Paul e os Beatles, foi resgatada em seguida, em um arranjo próximo ao original, paradoxalmente fazendo com que essa canção, tão ouvida e decorada, soasse como nova de novo. Enquanto cantava “Bright are the stars that shine”, Paul olhava o céu, buscando o estado de espírito adequado, para cantar de novo aquela letra com toda a emoção, personificando o personagem da letra. Isso é parte do que o torna um intérprete tão especial, pensei. Aquilo parecia muito profissional e muito emotivo. Nunca mais vou ouvir essa canção da mesma forma. “I know this Love of mine will never die”, Paul continuou, enquanto eu pensava em quantos versos de amor dos Beatles descrevem bem o próprio amor que sentimos pelos Beatles.

A festa não parava. Sozinho, ao violão, Paul entoou “Blackbird”. O gigantesco painel no fundo do palco simulou a noite no campo, com uma árvore solitária, como o próprio Paul no palco. Embora ele já tenha declarado ter composto a canção a uma jovem negra dos anos 60, lutando por seus direitos em um mundo conservador, a mensagem se aplica a todo mundo: todos eram convidados a superarem as feridas e alçarem voo na calada da noite. Uma enorme Lua inflável desceu do alto do palco, pendendo luminosamente sobre a melodia, em um efeito de grande beleza. Durante a canção seguinte, a linda “Here today”, dedicada a John, uma Terra inflável desceu também, para fazer companhia a seu filha-irmã. Quem é a Lua, quem é a Terra? John e Paul, talvez? Os dois lados da mesma moeda gravitavam no mesmo som, refletindo os astros do céu e os astros do rock.

“Dance tonight” veio na sequência, em perfeito contraste com a doce melancolia de “Here today”. Todos dançaram ao som do mandolim de Paul, mesmo Abe, que, atrás de seu kit, trocava olhares com Wix e ensaiava passos suaves, em contraste com seu corpão, que animaram a festa. “Mrs. Vanderbilt” levantou o estádio, e mesmo Rusty pulou todo o tempo animadamente. “Eleanor Rigby”, a preferida do meu mais velho, veio, e liguei para casa de novo. “Ram on”, em seguida, foi uma das grandes surpresas da noite, preparando o coração para uma linda “Something”, acompanhada por imagens de George Harrison, e a empolgante “Sing the changes”, marcada por um deslumbrante violão de doze cordas, tocado por Brian Ray e novamente presente na pérola seguinte, “Band on the run”, talvez o maior clássico de Paul, naturalmente cantada efusivamente pela plateia. “Ob-la-di Ob-la-da”, já eleita pelos invejosos como uma das piores canções do século XX, calou os críticos com a potência de cinquenta mil vozes, que acompanharam sílaba por sílaba a alegre aventura de Desmond e Molly. Após a esfuziante “Back in the USSR”, obviamente uma das preferidas de Rusty, Paul brincou com a plateia e mandou ver com “I´ve got a feeling”, uma canção muito importante para mim, pois foi quando a ouvi pela primeira vez que me dei conta racionalmente da genialidade da dupla Lennon-McCartney, através da bem bolada sobreposição das melodias cantadas pela dupla. Pensei no meu amigo Pablo, quinze anos atrás, dizendo que o Paul nunca mais teria voz para cantar aquelas notas altíssimas e urradas. Aqui estava o mestre, Pablito! E vivemos para testemunhar! Fechando a sequência mais roqueira da noite, Paul apareceu munido nada mais nada menos do que de sua Epiphone Casino, uma das mais lendárias guitarras beatle, e apresentou uma espetacular versão atualizada de “Paperback writer”.

Quando começou o medley de “A day in the life” e “Give peace a chance”, uma pequena melancolia surgiu: pela audição de muitas gravações amadoras, eu sabia que obra-prima, uma das minhas preferidas em todo o cânone beatlemaníaco, anunciava a proximidade do fim do espetáculo. Paul, porém, não dava espaço para pensar nisso. Ainda no piano, cantou “Let it be” lindamente, seguida por um momento apoteótico. Um jornalista local muito inspiradamente escreveu que, em “Live and let die”, as emoções despertadas durante todo o show “literalmente” explodiram. De meu lugar privilegiado, perdi os fogos de artifício sobre o palco, mas senti vivamente o calor das labaredas que se erguiam nas laterais do palco. Depois desse espetáculo de luz e calor, o magic piano, mais um instrumento lendário, foi trazido ao palco, e a linda “Hey Jude”, com o emocionado coro dos presentes, encerrou a parte principal da apresentação, e Paul deixou o palco, enquanto o “La-la-la-la” continuava, na voz da plateia, pedindo o bis.

Paul voltou ao palco, é claro, gritando o que muitas pessoas queriam ouvir: “Eu sou gaúcho!”. Meu coração mineiro ficou enciumado, mas compreensivo: todo o Brasil era gaúcho naquela noite. O primeiro bis, com a sequência de “Day tripper”, “Lady Madonna” e “Get back”, manteve a plateia agitada e cantando. Após a saída da banda, o coro continuou, dirigindo-se ao Paul: “Get back to where you once belonged”! Paul, como esperado, voltou quase sozinho, apenas com seu mítico violão Epiphone, para uma performance irrepreensível de “Yesterday”, quarenta e cinco anos após sua composição, no que certamente foi o momento mais esperado da noite para muitos dos presentes.

Em seguida, satisfazendo o sonho de muitos outros e exibindo sua versatilidade, Paul rompeu o lirismo em uma explosiva interpretação de “Helter skelter”. O painel no fundo do palco exibia imagens feitas da ponta de um carrinho de montanha-russa. De onde eu estava, tinha-se a impressão de se estar dentro do carrinho, de modo que, à medida em que os poderosos acordes da canção retumbavam pelo estádio, éramos levados efetivamente às alturas, depois jogados à adrenalina de uma queda livre, em uma intensa alternância de emoções. Por esse motivo, esse momento foi, para mim, a síntese do show e de toda a experiência da viagem.

Em uma de suas saídas do palco, Paul já voltara carregando a bandeira do Brasil e a da Inglaterra. Agora, antes de se despedir definitivamente, conversou com a plateia, lendo os cartazes e convidando ao palco duas garotas para receberem autógrafos no braço, que, no dia seguinte, seriam convertidos em tatuagens. Apesar da simpatia do Paul e do entusiasmo do acontecimento, para não ser cegamente fanático, se eu fosse obrigado a apontar um momento menor do show, escolheria esse. Como Paul já repetira exatamente o mesmo gesto em outros shows, o que era para ser uma surpresa adquiriu um certo tom de previsibilidade. Mais emocionante foi a conversa com um rapaz da plateia, que, pedindo para tocar bateria com a banda, foi divertidamente rejeitado pelo Paul: “We´ve got drummer, man… Next time!”. Depois do show, vim a saber que o sortudo que trocou palavras com o Paul em pleno Beira-Rio era simplesmente meu companheiro de beatlemania internáutica Ricardo Martinelli – um excelente baterista, pelo que consta.

E assim, deixando-nos em completa e alegre leveza, Paul encerrou a noite com o medley “Sgt. Pepper´s reprise/ The end”, que contou com o exuberante diálogo das três guitarras. Enquanto pronunciava o “you”, em “in the end, the love you make is equal to the love you take”, Paul apontou para a plateia, em um gesto, naquele momento, cheio de significado. Eu realmente me sentia recompensado por meu amor. Uma chuva de papel picada verde e amarelo foi jorrada pelo estádio, e, enquanto Paul e a banda deixavam o palco, as luzes se acendiam, e o público em júbilo contemplava a nuvem colorida que se formava no estádio. Uma madrugada colorida e feliz começava em Porto Alegre.

A VOLTA PARA CASA

Ainda na pista, reencontrei o Alessandro e o simpático casal Fernando e Bruno, que conhecera na ônibus para o estádio. Como estávamos todos no mesmo hotel, saímos passeando juntos, visitando a barraquinha de souvenir e trocando impressões. As ruas estavam abarrotadas de pessoas saindo do show. Táxis não estavam disponíveis. Caminhamos por mais de duas horas pelas ruas da cidade, até finalmente encontrarmos um motorista que nos levasse de volta ao hotel. Novamente, não tive sorte com o taxista: este, visivelmente alterado, dirigia imprudentemente e em altíssima velocidade, levando o Adriano a comentar que acháramos um piloto, não um motorista. Felizmente, chegamos sem maiores conseqüências ao hotel, já perto das 3:00 da manhã. Pedi no bar do hotel um hambúrguer descongelado, que lanchei juntamente com duas latas de Coca zero que havia deixado na geladeira do meu apartamento para esse fim. Conferi trechos da gravação do show, tomei um banho, programei despertadores para  as 4:00 da manhã e despenquei na cama, para uma hora de sono curta, mas muito feliz.

Às cinco horas, já estava no aeroporto, para o que seria um voo mais leve do que o da vinda. Além do Alessandro, que voltaria no mesmo avião, eu me encontrei com a Maria Fernanda, minha amiga e colega de trabalho, que também tinha visto o show, com o irmão e alguns amigos de Curitiba, e que, mais acostumada a voar, não me deixou ficar tão ansioso. Viemos quase toda a viagem falando também sobre o show, é claro, mas já discutindo nossa formação e muitas questões pedagógicas que fazem parte da nossa rotina. De certa forma, através daquela conversa, eu estava trazendo meus pensamentos de volta também.

Era difícil acreditar que quarenta e oito horas antes eu estava a caminho de Porto Alegre. Apenas dois dias se haviam passado, mas, em intensidade e sensações, parecia que eu havia deixado Belo Horizonte cinquenta anos antes.

Por volta das 11:00, o trem de pouso do voo 1352 da Gol tocou suavemente a pista do aeroporto de Confins. Telefonei para casa e peguei o táxi. Às 14:55, estaria normalmente na sala de aula, trabalhando, mas, pela primeira vez, acho, não estava realmente ali. Meu coração continuava em Porto Alegre, no Beira-Rio, na noite anterior. Se a vida permitisse, o correto seria parar por algumas semanas e absorver mais lentamente a experiência.

Não tem sido facílimo retomar a vida normal. A ida ao show, com todas as experiências acessórias que ele provocou, parece ter sido um momento de entrada em alguma outra dimensão com a qual eu continuo estranhamente conectado. A mera normalidade das obrigações nunca me seduziu, mas, depois do show, ela parece ainda mais banal. Ainda assim, como quando a Dorothy revê os rostos supostamente conhecidos após voltar da Terra de Oz, parece que a paisagem está de alguma forma marcada pelo show. Parece, às vezes, que vejo algum retalho do papel daquela chuva, ou alguma luz do painel, ou escuto um sotaque gaúcho. A música do Paul, que sempre esteve tocando, está ainda mais presente. Assim, se por um lado o testemunho de uma beleza extraordinária tende a nos deixar mais cientes dos limites do mundo, por outro lado a mesma beleza faz com que o mesmo mundo pareça mais bonito, e, embora a percepção do massacre da rotina se torne mais evidente, o enfrentamento desse mesmo massacre se torna mais suave. Em outras palavras, a experiência de ver o show do Paul, embora possa ser comparada à experiência de sair do mundo, paradoxalmente faz o nosso estar no mundo muito mais intenso.

Eu acho que nunca mais vou ser exatamente o mesmo. O show de Porto Alegre foi melhor do que todos os meus sonhos. Meus sentimentos são de plenitude e gratidão. Aquele domingo certamente será um dos dias mais felizes da minha vida. Embora seja inevitável que o tempo passe e as memórias se acomodem, sei que de vez em quando essas lembranças vão achar o caminho entre o emaranhado da memória e voltar à superfície, tão intensamente como no momento de sua criação. Esperarei esses rompantes com carinho.

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José Carlos Almeida

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