O passado revirado tantas vezes seria um perigo se Paul McCartney não arrebentasse as comportas e o fizesse transbordar sobre o presente. É tudo muito rápido, uma sequência de três acordes em sete segundos, e ‘Eight Days a Week’ deflagra o mecanismo de desconstrução do tempo que vai levar 2h50. Se não há mais passado, nada pode destruí-lo. E o homem que está ali em cima pode fazer a mesma viagem mil vezes que ela será sempre nova.
As luzes do Estádio Kleber Andrade, em Cariacica, na Grande Vitória, se apagam. Um público estimado pela produção em 34 mil pessoas ergue os braços com as lanternas dos celulares acesas e uma fumaça toma o palco. Paul abre o portal com ‘Eight Days a Week’, uma canção que terá 50 anos no próximo dia 4 de dezembro, quando foi lançado o álbum ‘Beatles for Sale’. Ele tinha 22 anos e estava eufórico. Os Beatles tinham feito ‘A Hard Days Night’ havia apenas dois meses e voltaram ao estúdio para mais uma aventura. Agora, ele sorri no palco ao lado de seus músicos ao ver a idolatria de um público de três gerações dividido em partes iguais. Aos mais velhos, os anos 60 em tempo real. Aos quarentões, os anos 60 que eles viveram nos 80. E aos mais novos, gente de 4 a 14 anos, o ‘hoje’ que seus pais insistem em chamar de ‘passado’.
A segunda canção dá um salto para ‘Save Us’, o Paul “moderno” que também vive em algum lugar dos anos 60. É uma das quatro músicas do ótimo álbum de inéditas mais recente, chamado ‘New’, que estão na nova turnê. ‘Save Us’, ‘Out There’, ‘Queenie Eye’ e ‘New’, a canção, são tentativas da criação de um “novo” impossível para Paul. O mesmo passado que o imortaliza o faz perder a parada quando colide com o presente. Suas músicas novas, por melhor que sejam, serão sempre coadjuvantes, submersas na enchente de memórias, criadas como se fossem para estar em algum LP dos Beatles.
Quando toca ‘Let Me Roll It’, Paul tem 32 anos. A canção que completou 40 anos de idade no último dia 15 de fevereiro, quando foi lançado ‘Band On The Run’, considerado seu melhor feito depois dos Beatles, o leva até os dias mais leves e felizes ao lado do grande amor de sua vida, Linda McCartney. Seu baterista, Abe Laboriel Jr, parece querer traduzir em peso o que a canção simboliza e solta a mão. A voz de Paul falha nas subidas íngremes e, de repente, ‘Let Me Roll It’ traz a lembrança que ninguém quer ter: Paul é de carne e osso.
Mitificado e imortalizado em vida, e sem a possível concorrência de John Lennon, única força que poderia contestar sua legitimidade em assumir sozinho a herança atemporal dos Beatles, Paul não vive apenas sobre um palco. E ele sabe disso. Quando tira a capa, corre para as academias de ginástica dos hotéis em que se hospeda pelo mundo e cuida da alimentação, mantendo distância das carnes vermelhas por ideologia e instinto de sobrevivência. A voz, o primeiro sinal de perigo emitido pelos cantores, voltaria a falhar em outras músicas, mas também surpreenderia ao conseguir escalar com segurança cordilheiras como ‘Helter Skelter’.
Ao cantar ‘Here Today’ e ‘Something’, ele lembra respectivamente de seus amigos John Lennon e George Harrison. São os dois únicos momentos em que quebra a lógica do tempo único e linear para deixar claro que também sente saudade. Saudade que só é possível com passado. Imagens de Harrison sorrindo como criança surgem no telão enquanto ele toca ‘Something’ da mesma forma como fez em suas últimas três turnês, iniciando tudo com o ukulelê de que Harrison tanto gostava.
Já perto do grande final que fará com ‘The End’, quando volta para dar o primeiro bis, ele traz o violão para tocar ‘Yesterday’ sem nenhum de seus músicos no palco. Ao olhar para a plateia de luzes, seus olhos ficam tristes e ele não parece estar nem em 1965, quando lançou a canção no disco ‘Help!’, nem em 2014. Seus olhos se prendem a um ponto no infinito e ele parece querer ouvir mais as vozes dos fãs do que a si mesmo. E termina suspirando aliviado como se dissesse “eu sou apenas um de vocês”.
Por Julio Maria (Estadão)
Comente