O que se podia esperar de um disco dos Beatles realizado após o Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band?
Certamente, fãs e imprensa mal conseguiam imaginar que novas canções viessem tão cedo, já que no ano anterior, 1966, o quarteto havia lançado apenas um álbum inédito, o não menos brilhante Revolver, quebrando uma série tradicional de dois LPs por ano mantida desde 1963.
Imaginou-se também que uma coleção de preciosidades tão revolucionárias fosse deixar a dupla Lennon/McCartney na lona, sem repetir um nível tão alto de criatividade musical.
Na verdade, dois meses antes do Pepper’s ser lançado – o que aconteceu em 1 de junho de 1967 -, os Beatles já estavam gravando material para um projeto pretensamente ainda mais ambicioso de Paul McCartney: um filme para a televisão com uma trilha sonora que incluiria novas faixas!
Macca teve a idéia enquanto viajava de avião para a América, no dia 11 de abril. Concebeu uma história modesta, cujo roteiro se basearia em uma viagem de ônibus pela psicodélica Inglaterra de 1967. Quando reencontrou os outros Beatles, dias depois, contou-lhes a idéia e ganhou o apoio dos parceiros. A partir daí, começaram a gravar algumas canções que poderiam ser usadas na trilha para o filme que seria, de fato, um especial de fim de ano para a TV.
As gravações foram acontecendo esporadicamente entre abril e novembro, período de mudanças substanciais na vida do grupo; no dia 14 de junho, eles gravaram “All You Need Is Love” para a primeira transmissão mundial via-satélite da história da humanidade. Lançada em single, esta canção chegou ao primeiro lugar nos dois lados do Atlântico, enquanto o Pepper fazia o mesmo, deixando público e imprensa de bocas abertas com seu conteúdo inovador, luxuoso, rico em técnicas de arranjos, composição e gravação.
Em função das badalações em torno do lançamento do single e do Pepper’s, o projeto do filme e de novas canções para a trilha foi deixado de lado temporariamente. Paul acabou por revelar na TV que usava LSD, causando um rebuliço quase igual ao da célebre frase de John sobre Cristo um ano antes. Portanto, uma subseqüente retirada geral para férias na Grécia veio a calhar. O famoso encontro com a meditação transcendental do Maharishi Yogi se daria no dia 25 de agosto, em Bangor, North Wales.
Nem tudo era luz, afinal. Em 27 de agosto, enquanto John, Paul, George e Ringo conheciam seu guru, Brian Epstein vem a falecer, deixando desnorteados seus pupilos, que não entendiam nada de negócios. Muitos historiadores observam neste trágico desaparecimento de Epstein o início da separação dos Beatles.
Assim, depois de algumas poucas sessões de gravação sem maiores compromissos, os quatro encontraram-se na casa de Macca, no dia 1 de setembro, para decidir o que fazer. E resolveu-se que o Magical Mystery Tour iria acontecer mesmo, o que fez com que as gravações de novos temas se reiniciassem a seguir, bem como as filmagens do especial, que rolariam de setembro até exatamente ao dia 31 de outubro. Os Fabs partiram com uma turma de 43 pessoas –entre amigos, técnicos e atores- em um ônibus pelo interior da Inglaterra, para o desenrolar de uma história improvisada que acabou ganhando ‘roteiros’ extras de John, George e Ringo. Eles se dividiriam então entre os estúdios da Abbey Road, os sets de filmagem no Shepperton studios, as locações abertas e algumas poucas entrevistas para a TV. O último dia de filmagem aconteceu com a solitária presença de Paul em Nice, frança, quando gravou a famosa cena de The Fool On The Hill.
Em novembro, os Beatles lançavam um novo single com Hello Goodbye e I Am The Walrus; a boutique da Apple é inaugurada, enquanto Ringo inicia sua carreira solo como ator filmando Candy. Harrison não fica atrás: começa a compor a trilha sonora do filme Wonderwall, inspirada na música indiana.
Em 8 de dezembro, é lançado um EP duplo com as novas canções do filme: Magical Mystery Tour, The Fool On The Hill, Flying, Blue Jay Way, Your Mother Should Known e, novamente, I Am The Walrus, que conheceu seu segundo lançamento menos de um mês após sair como lado B de Hello Goodbye. O filme chegou à TV em 26 de dezembro, com sua premiére na BBC 1.
Os críticos malharam o projeto com gosto, considerando-o uma baboseira gigantesca. Era a primeira vez que os Beatles eram criticados negativamente por um trabalho. Apesar do esforço de Paul em defender aquele que era seu projeto de fato, pouco adiantou. A unanimidade se formou ao redor das críticas ruins, que diziam ser perda de tempo total acompanhar tamanha junção de cenas desconexas, sem sentido, absolutamente inócuas para o que se pretendia classificar de entretenimento saudável.
Enquanto na Inglaterra a trilha saiu em EP, na américa a gravadora Capitol tomou uma atitude diferente, reeditando a tradição de antigamente, que era a de montar um repertório próprio. Para tanto, juntou às canções do Magical todos os compactos simples lançados durante o ano; ou seja, pela primeira vez, músicas como Penny Lane, Strawberry Fields Forever, All You Need Is Love, Baby You’re A Rich Man e Hello Goodbye chegaram a um LP. A EMI alemã seguiu a idéia da filial americana e também lançou a trilha no mesmo formato e repertório. No Brasil, o disco saiu exatamente como na Inglaterra, com o lançamento da edição americana acontecendo somente 10 anos depois, em 1977, quando a matriz inglesa finalmente lançou o LP. No entanto, o Magical Mystery Tour tornou-se, para todos os efeitos, o 9* álbum de carreira dos Beatles. Vamos às faixas, todas produzidas pelo bom e velho George Martin.
MAGICAL MYSTERY TOUR
A faixa-título que apresenta o filme, também abre o LP. Não por coincidência, foi a primeira música a ser gravada, o que aconteceu entre 25 de abril e 3 de maio, no estúdio 3 da EMI em Abbey Road. Foi composta por Paul, claro, a partir de sua idéia do filme. Tem uma introdução pesada em 6/8, passando para um acelerado ritmo em 4/4. Ao longo da canção o ritmo muda para um andamento mais lento, que se alterna com os rápidos constantemente. A melodia é simples, deixando a força para os back-vocais e para o tom de ‘tema de abertura’ da faixa. O arranjo ganhou instrumentos de sopro tocados por David Mason, Elgar Howarth, Roy Copestake e John Wilbraham. Paul tocou percussão, contrabaixo e piano, fez o vocal principal, o coro e idealizou o arranjo; John e George ficaram com os violões, guitarras rítmicas e percussões diversas. Ringo, além da bateria, também tocou percussão.
THE FOOL ON THE HILL
Uma das melodias mais bonitas escritas por McCartney, uma espécie de irmã mais desenvolvida de For No One. George Martin descreveu certa vez a capacidade de Paul de surpreender os ouvintes com uma resolução harmônica súbita acompanhada de um quebra de ritmo, como acontece aqui na volta do refrão para a melodia principal. A letra também é bonita, ressaltando que atrás de uma personalidade aparentemente comum, pode haver um espírito nobre e visionário. Essa música começou a ser gravada em 25 de setembro, terminando com os overdubs das flautas em 20 de outubro. Paul está no vocal e no piano, enquanto John e George, além de violões, tocam harmônicas. A versão final do LP ficou apenas com alguns efeitos percussivos de Ringo. Ken Essex e Leo Birnbaum acrescentaram violas na última sessão também.
FLYING
Único tema inteiramente instrumental (ou sem letra) do grupo lançado até 1994 (quando a “12 Bar Original” saiu no Anthology), esta faixa começou a ser gravada em 8 de setembro. Ganhou o inédito crédito dos quatro beatles! Trata-se de uma melodia simples e de complemento de cena (aparece durante uma pegada de câmera nas nuvens), na tradicional cadência harmônica de tônica-dominante e sub-dominante em dó maior, melodia esta ressaltada em um coro com as vozes de todos eles. Tinha uma montagem original que a encerrava com um arranjo de jazz tradicional com saxofone, que acabou sendo cortado da versão final. Ao invés disso, um mellotron tocado por Lennon foi acrescentado fechando a canção com ares psicodélicos.
BLUE JAY WAY
Esta é a contribuição de Harrison para o filme. Começou a ser gravada na madrugada do dia 7 de setembro, depois de gravações adicionais em I Am The Walrus e The Fool On The Hill, fato que retrata bem o que George dizia: que suas músicas sempre recebiam atenção apenas nas horas de sobra de estúdio, depois que John e Paul gravavam suas composições. Blue Jay Way segue o esquema de Within You Without You, ou seja, usa desenhos melódicos que insinuam uma forte influência das ragas indianas. A letra é banal, revelando o sentimento de expectativa da chegada de Derek Taylor à casa alugada por George em Los Angeles um mês antes, quando esteve na América. A rua em que ficava a casa deu o título à canção. Neste caso, Harrison dispensou a cítara e a tabla e acrescentou um órgão hammond, que dá o gosto timbrístico da gravação juntamente com os cellos. Os vocais também são cheios de efeitos, criando um dos mais fortes climas psicodélicos desta fase.
YOUR MOTHER SHOULD KNOW
Esta canção foi gravada algumas vezes com versões distintas. A que entrou no disco acabou sendo a primeira a ser gravada, em 22 e 23 de agosto, antes da morte de Epstein. O trabalho foi feito no Chappell
Recording Studio, em Londres. Paul aproveitou a disponibilidade do estúdio após ter produzido a gravação de Catcall, canção de sua autoria, com o grupo Chris Barber Band. Os estúdios da Abbey Road estavam sem horários livres, o que também levou o grupo a escolher outro local. A melodia de Your Mother… tem a mesma raiz criativa de When I’m 64, embora seja mais simples e não possua uma segunda parte.
I AM THE WALRUS
Um dos maiores clássicos da música popular mundial de todos os tempos, esta canção é um marco da fase psicodélica do rock e o retrato mais visceral das experiências de Lennon com o LSD. Começou a ser gravada no dia 5 de setembro, uma terça feira. Tem uma melodia típica de John, que conseguia como poucos montar um desenho que usava poucas notas, repetindo-as genialmente de tal maneira que se criava uma tensão instigante e assombrosamente bela. O piano elétrico tocado pelo autor e sua voz ácida acrescida de efeitos tétricos de distorção fazem de Walrus uma obra prima da época e uma espécie de visão às avessas do flower-power. O arranjo de Martin é outro ponto alto: cordas que sobem e descem em semitons são a vestimenta perfeita para uma letra que transpira a loucura e o surrealismo de uma viagem alucinógena, mas ao mesmo tempo lúcida, que começou a sugerir à John Lennon uma realidade mais sombria do que as flores coloridas que cercavam a geração paz e amor. Uma revolução.
HELLO GOODBYE
Abrindo o lado 2 do LP americano, está o lado A do último single lançado pelos Beatles em 1967. É uma linda canção de Paul, mais uma vez simples e eficiente, tocada sobre a escala decrescente de dó maior. Assim como no resto das músicas desta fase, há poucos solos de guitarra no arranjo. Aqui, a mixagem final deixou que apenas duas notas como efeitos complementares para as cordas e para o mellotron tocado por John. Ringo obtém um bom jogo de virada de compassos na bateria, enquanto a voz de Macca ganhou uma tonalidade mais aguda com a aceleração da fita onde se registrou seu vocal. Gravação iniciada em 2 de outubro e finalizada em 2 de novembro, 22 dias antes de ser lançada em compacto.
STRAWBERRY FIELDS FOREVER
O que dizer de um LP que tenha em seu repertório Strawberry Fields, I Am the Walrus e Penny Lane, por exemplo? Sem dúvida, foi a única feliz decisão da Capitol americana no que diz respeito às montagens de discos dos Beatles em seu território. Desnecessário dizer, mas vamos lá: esta é a divisora das águas da música pop, uma obra prima primorosa e avassaladora, os gênios criativos de John Lennon e de George Martin em ação. Sim, pois este último era o único que conseguia traduzir para as pautas musicais e fitas magnéticas o que o compositor tinha em mente. Melodia simples e bela, arranjo audacioso e repleto de efeitos, esta faixa é, como já disse, um marco na história da música popular em vários quisitos: surrealismo da letra, revolução em técnicas de gravação, arranjos e transposição da imaginação em resultados sonoros concretos. São os Beatles voltando ao passado, evocando sua memória infantil e lúdica, observando os detalhes minuciosos escondidos por entre as árvores de um orfanato. Tudo isso revestido com as cores do psicodelismo e com as abstrações provocadas pelo LSD.
PENNY LANE
O diálogo de Paul com o parceiro John, sua resposta igualmente evocativa das memórias de criança que brinca pelas ruas escuras e úmidas de Liverpool. Outro clássico, uma obra prima imprescindível no imaginário musical de qualquer ser humano, uma canção pop com uma melodia nobre e bucólica, lindíssima e envolvente, uma harmonia elaborada adornada por trompetes que resgatam Bach para o ambiente popular/jovem, efeitos sonoros e timbrísticos que nos levam para dentro de nós mesmos, numa viagem interminável e saborosa pelos mais misteriosos cantos da mente humana. Essa era a diferença crucial entre Paul e John: enquanto o último imprimia uma melancolia instigante e uma dor sutil em seus temas, o primeiro sempre deixava transparecer sua doce vocação para a felicidade e o otimismo. E em Penny Lane ele nos fala das ruas de Liverpool, do barbeiro, das gírias malandras e das luzes divinas que se diluem em nosso cotidiano.
BABY YOU’RE A RICH MAN
Esta faixa saiu originalmente no lado B de All You Need Is Love, em junho. Começou a ser gravada em 11 de maio. É um tema de John, uma canção despretensiosa e agradável, criada para o filme Yellow Submarine, outro projeto oferecido aos Beatles na ocasião. Trata-se de uma daquelas faixas em que eles experimentavam efeitos diferentes, timbres desconhecidos; Lennon toca um instrumento chamado Clavioline, um teclado que podia reproduzir vários sons, enquanto Eddie Kramer, o segundo engenheiro de som de Abbey Road, acrescentou um vibrafone. A letra é uma ironia à vida de ‘ricos e famosos’ que os quatro levavam.
ALL YOU NEED IS LOVE
O LP americano se encerra com esse mega sucesso lançado seis meses antes em single. É o hino da geração hippie, o ápice da mensagem colorida do verão do amor. Com uma melodia simples e um arranjo rebuscado pela orquestra de Martin, All You Need Is Love é mais uma celebração de um evento (a transmissão via satélite) do que uma peça musical, e encerra com um colorido ingênuo e festivo um álbum repleto de visões ácidas, viagens psicodélicas, memórias vívidas e surrealismos saltitantes. Sim, Magical Mystery Tour sobreviveu à proximidade com o Sgt. Pepper’s.
Marcelo Sanches