Fazia um frio dos diabos em Londres na manhã daquele dia trinta de janeiro de 1969, uma terça-feira, por volta do meio-dia. A região onde funcionava o escritório da Apple Records, na área central, era conhecida por abrigar atividades comerciais como escritórios de advocacia, consultórios médicos, setores executivos de empresas, lojas de departamentos e bancos, entre outros. Desde o dia vinte e sete havia uma movimentação incomum de pessoas subindo e descendo do telhado do prédio de quatro andares onde estava instalada a gravadora dos Beatles. E também dos edifícios em frente, ao lado e aos fundos. Era a equipe do cineasta Michael Lindasy-Hogg trabalhando para viabilizar uma idéia de Paul McCartney, copiada na realidade de uma iniciativa pioneira da banda Jefferson Airplane e de dois loucos geniais, Jean-Luc Goddard e D.E Pennebaker.
Paul tomara conhecimento da filmagem de uma apresentação do Jefferson Airplane em novembro de 1968 no teto de um edifício em Nova York. A sequência foi inserida no filme One A.M (American Movie), de Jean-Luc Goddard e D.E Pennebaker, dois cineastas com forte ligação com o rock and roll. A produção jamais seria finalizada, mas a sequência onde o ‘Airplane’ toca a complicada canção ‘The House at Pooneil Corners” deu o que falar atraindo na rua abaixo uma considerável leva de pedestres. A aventura acabou abortada pela polícia nova-iorquina. Num trecho do filme um policial ‘brande’ em direção aos músicos um exemplar do código de posturas, informando que o grupo não poderia estar tocando naquele local. McCartney achou a idéia fantástica para o fechamento do projeto Get Back/Let it Be. Talvez não imaginasse que a apresentação registrada no teto da Apple entraria para a história como a última realizada pelos Beatles.
Se a ideia original de tocar ao vivo num telhado não foi dos Beatles, que sirva como consolo que a repercussão foi muito superior à do concerto realizado pelo Jefferson Airplane. Todo mundo que tocou no alto de um prédio depois de janeiro de 1969 o fez inspirado na atitude dos Fab Four, indubitavelmente. Na última semana daquele mês já estava decidido que Get Back não seria mais um documentário de televisão. Ganharia o mundo através das telas de cinema. Também já havia sido tomada a decisão de que a banda não faria o que inicialmente se planejou: um documentário entremeado com cenas de um mega concerto nunca antes realizado, numa locação exótica. A idéia de tocar nas ruínas de Pompéia, por exemplo, surgiu nessa ocasião e foi veementemente ‘rejeitada’ por John Lennon e, sobretudo, George Harrison. Também se debateu a possibilidade do concerto se realizar no Roundhouse em Londres, mas a proposta também não avançou.
O clima, um mês depois do início das filmagens do que viria a ser Let it Be, não era nada bom entre os Fab Four. Deteriorava-se a relação entre John Lennon & Paul McCartney. E George Harrison chegou a abandonar a produção por quase duas semanas. Como é do conhecimento geral, a intenção de se promover ‘a volta’ dos Beatles ao modo mais simples de produzir discos e canções e que poderia ter desaguado no retorno da banda aos palcos do planeta, acabou servindo para consolidar seu fim.
O retorno de George Harrison, registre-se, foi decisivo para dar fim às filmagens do projeto Get Back/Let it Be. Depois da mini tour com Delaney, Bonnie and Friends ele desembarcou em Londres numa quarta-feira, dia quinze de janeiro e reuniu-se com os outros três para uma conversa a portas fechadas que durou cinco horas. George avisou que estava pronto para deixar definitivamente o grupo. Ninguém replicou. O que ficou acertado nesse dia é que não haveria mais especial de televisão nem concerto ao vivo em nenhuma locação. Combinou-se também que o melhor do material produzido viraria um álbum de inéditas, desde que fosse devidamente lapidado nos estúdios. Apple estúdios. Para o restante das filmagens o material seria capturado na gravadora própria da banda. Por incrível que pareça somente a partir desse dia é que tudo o que fora gravado com pretensões de exibição televisiva passou a ser tratado como projeto para o cinema. Isso em parte explica o festival de erros e equívocos de edição do filme Let it Be, abordados – como os internautas mais atentos sabem – em duas revistinhas virtuais anteriores desta coluna.
A idéia de tocar ao vivo no telhado para fechar o filme surgiu nesse turbilhão. George, John & Ringo também tinham acompanhado as notícias da controvertida apresentação do Jefferson Airplane quase um ano antes e se posicionaram favoráveis. John & Paul achavam – e nisso concordavam plenamente – que a apresentação num local exótico e não anunciado em pleno horário de almoço funcionaria como diversão gratuita para os trabalhadores das redondezas. Sem falar que a reação deles poderia render muito para os flagrantes que as câmeras iriam capturar. Mas o Rooftop Concertnão se realizaria totalmente sem restrições. George Harrison deixou claro que não tocaria nenhuma de suas músicas. Novas ou velhas.
Ao mesmo tempo, Michael Lindsay-Hogg corria contra o tempo para viabilizar a aventura de tocar no telhado da Apple em termos técnicos. A primeira providência dele foi assistir às pressas com sua equipe, trechos da filmagem de One A.M (American Movie) aquele que uniu Goddard e Pennebaker. Visualizando-se uma produção e outra é possível observar que Michael copiou alguns planos e contra planos utilizados pelos colegas mais famosos para documentar a apresentação dos Beatles. Espalhou câmeras pelos prédios vizinhos, preocupou-se com a iluminação natural por considerar o mau tempo daquela ocasião em Londres e estava interessado no maior número possível de material que pudesse produzir para a futura edição final.
De maneira prosaica para os dias de hoje, Lindsay-Hogg também espalhou técnicos com câmeras e gravadores de áudio Nagra pela calçada defronte ao edifício da Apple para capturar o som ambiente e possíveis reações do público. Como se vê no filme, passantes foram entrevistados enquanto o som rolava lá do alto, sendo capturado com muito eco de forma distante pelos microfones acoplados aos Nagra no solo, quatro andares abaixo. E lá em cima? Lá em cima os Beatles foram instruídos a ocupar pequenos espaços ‘demarcados’ com fitas crepe, coladas às tábuas que foram estendidas sobre o piso do teto, uma medida para ‘encorpar’ um pouco mais o som da banda. A filmagem trabalhou com quatro câmeras no teto gravando direto, seguindo o sistema adotado nas tomadas em Twickenham e nos estúdios Apple.
Apesar da fama e da importância dos Beatles, a produção de Get Back não utilizou sequer uma grua para fazer imagens aéreas da frente do, digamos assim, ‘palco’ onde a banda tocou. Dada a ausência desse equipamento – e do pequeno espaço lá em cima – não foi fácil capturar imagens frontais. Alguns câmeras foram obrigados a trabalhar quase deitados aos pés de John e Paul. Essa precariedade para realizar tomadas fica visível no filme, em prejuízo das aparições de George Harrison & Ringo Starr. Havia uma ‘parafernália’ de fios e de equipamentos espalhados pelo local. As ligações e conexões foram providenciadas pela turma de Michael Lindsay-Hogg e pela equipe comandada por Mal Evans. Mal e Tony Bramwell se responsabilizaram por montar o equipamento dos Beatles, que então dispensara as caixas Vox.
Os retornos de som agora eram belíssimas caixas Fender valvuladas. E não houve passagem de som a não ser na hora em que as gravações iriam rolar. Quando as câmeras foram ligadas no final da manhã daquele dia trinta de janeiro de 1969, John, Paul, George & Ringo subiram ao teto para o que desse e viesse, sem saber exatamente o que aconteceria posteriormente. Iriam tocar e pronto. E não subiram sozinhos. As novas músicas exigiam a presença de um competente tecladista e pela primeira e única vez numa apresentação pública (ou quase pública) os Beatles tocavam com um quinto músico, Billy Preston, que por sinal, estava participando das gravações nos estúdios Apple desde o dia vinte e dois passado (1969).
O comportamento dos quatro Beatles lá em cima não foi exatamente o de quem realizava um concerto. Nem poderia ser diferente. Eles estavam naquele telhado para uma filmagem. Pareciam inicialmente tensos e trabalharam o tempo todo em benefício das câmeras de Lindsay-Hogg, sem preocupação com o público, que por sinal, não pôde vê-los naquele dia, apesar da aglomeração que se formou diante da Apple. Com o andamento da apresentação o destaque foi a alegria de John Lennon, com suas piadas, tiradas sarcásticas e a inclusão de paródias entre uma e outra canção. Ringo também parecia relaxado, além de tocar com grande precisão. George Harrison é enquadrado quase todo tempo muito sério, sisudo, mas tocando sua Telecaster Rosewood com destreza e uma velocidade incomum se considerarmos seu estilo.
Como o que estava rolando no teto da Apple era uma filmagem, foi necessário repetir algumas canções em busca da perfeição. “Get Back”, por exemplo, foi tocada quatro vezes, com o objetivo de ajustar o som e produzir ‘best takes’ para a melhor tomada de imagem possível. A Apple/EMI instalou um equipamento multi track para registrar todo o áudio para a história. Mas nem tudo o que rolou lá em cima teve registro profissional. Em nome da preservação histórica pela passagem dos 40 anos do Rooftop Concert, a coluna Pop Go The Beatles detalha passo a passo os quarenta e dois minutos que marcaram a última ocasião em que o quarteto THE BEATLES se apresentou ao vivo.
Thursday 30 January
Apple Corps (Roof) London
– Metade do material filmado e gravado no teto da Apple foi parar no filme Let it Be. As versões de “I’ve Got a Feeling”, “Dig a Pony” e “One After 909” foram editadas e incluídas no LP/CD Let it Be.
SETTING UP
O primeiro som que se ouve quando o multi track começa a gravar no alto do teto da Apple é o da voz de Michael Lindsay-Hogg. O cineasta ordena: ‘all cameras take one’ ao tempo em que os Beatles sobem, ajustam instrumentos, Ringo reclama com Mal Evans de ter montado do lado errado uma parte de sua bateria… e a magia está para começar. Antes, entretanto, os gravadores Nagraconectados às câmeras A e B captam Lindsay Hogg informando na linha interna que a gravação começaria pelo rolo de fita número 560-E. Ele também instrui os operadores das quatro câmeras para ligar os equipamentos simultaneamente.
GET BACK (rehearsal 1)
O multi track não ‘pega’ a primeira versão de “Get Back”, que dura pouco tempo, tão somente para ajustar os equipamentos. O trecho é gravado à distância, capturado pelo microfone de um dos gravadores Nagra (não exatamente os conectados às câmeras A e B). Não consta nos rolos gravados profissionalmente. Seguem-se ruídos de afinações de guitarras, vozes dos Beatles e dos técnicos trocando instruções, etc.
GET BACK (rehearsal 2)
Multi track ligado. Michael Lindsay Hogg avisa que aquele será o take um e os Beatles mandam ver. A voz de Paul está em primeiro plano, em single track sem a segunda voz de John, que parece mais preocupado com o solo. Na segunda parte ele participa dos backing vocals. Esta versão é considerada ‘ensaio’. No encerramento, aplausos educados são ouvidos da parte dos técnicos e dos privilegiados que estavam lá em cima, pertinho dos Beatles. Paul pisoteia um grilo saído debaixo das tábuas e murmura alguma coisa sobre Ted Dexter, um músico famoso na Inglaterra. John brinca afirmando que a banda tinha um pedido musical para atender da parte de ‘Martin Luther’.
I WANT YOU (She’s So Heavy)
Sons de afinação de guitarras são ouvidos e uma linha ou duas da introdução dessa faixa é escutada. Não consta do multi track.
GET BACK (take 01)
Esta versão de “Get Back” é melhor executada que a anterior (rehearsal 2). Michael Lindsay Hogg utilizaria pedaços das duas para editar a versão que vemos no filme. No final da canção John diz: ‘atendendo ao pedido de Daisy Morris e Tommy’.
DON’T LET ME DOWN (take 01)
A versão ficou tão boa que foi para o filme sem retoques. Soberba interpretação. No áudio dos Nagra disponíveis na pirataria é possível ouvir as vozes de Paul e John bem cruas.
I’VE GOT A FEELING
Mais uma interpretação magistral aproveitada integralmente no filme e no disco Let it Be. Ao final John diz: ‘oh my soul… (ouvem-se aplausos) e ele conclui afirmando… ‘so hard’. George faz vocalizações ao longo da faixa. Há uma interrupção para afinação de instrumentos e trocas de instruções. Ouvem-se gritos e breves discussões de John, Paul e Michael Lindsay Hogg.
ONE AFTER 909 (snippet)
Começa com o teclado de Billy Preston enquanto Lindsay Hogg ordena que as câmeras se preparem para a gravação. Esse trecho dura apenas dezessete segundos.
ONE AFTER 909 (take 01)
Estupenda versão com show particular de George Harrison na guitarra solo. A gravação é utilizada no filme e aproveita inclusive o trecho sarcástico em que John canta uma linha de ‘Danny Boy’ (‘Oh danny boy, the pipes, the pipes are calling’) antiga canção de 1913, composta pelo advogado Frederick Weatherly e originada de um trecho do hino da Irlanda, Londonderry Air. Este take de One After 909 também foi selecionado para os discos Let it Be e Get Back (não lançado).
DIG A PONY (rehearsal)
Enquanto novas afinações de instrumentos são feitas, ouve-se George Harrison ensaiando a introdução e o solo de guitarra. É possível ouvir pelo equipamento profissional multi track o pedido de John pela letra da música. No filme há uma cena de um assistente ajoelhado com uma prancheta apontada na direção de John Lennon
DIG A PONY (take 01)
A canção começa com um false start e uma contagem (‘one, two, three… one, two three’). A introdução e o encerramento da faixa onde eles cantam, ‘all I want is you’ foi ‘limada’ pelo produtor Phil Spector para o disco Let it Be, aparecendo de forma integral no filme.
GOD SAVE THE QUEEN
A banda para. Novos ajustes de equipamentos e do instrumental são feitos, enquanto se ouve discussões. O cineasta Michael Lindsay-Hog troca rolos de filme em suas câmeras, além de distribuir ordens aos técnicos. A fita do multi track também precisou ser trocada nesse trecho. Enquanto o segundo engenheiro Alan Parsons (aquele do Alan Parsons Project) fazia o serviço, um trecho de ‘God Save the Queen’ foi tocado. Aparece integral nas fitas dos Nagra e como um mero fragmento na nova fita do multi track.
I’VE GOT A FEELING (take 2)
Começa com trechos dos acordes nas guitarras, enquanto se ouve Paul conferindo a afinação do baixo. A versão foi tentada como alternativa em relação à primeira, mas não entrou no filme. John erra a letra. É possível perceber que foi tocada de forma despretensiosa. No encerramento John brinca com um trecho de ‘Pretty Girl is Like a Melody’, hit do ano de 1946 na voz de Irving Berlin. Ouve-se ainda brevíssimo acorde de “Get Back”. Esta gravação foi usada no álbum Let it Be…Naked (2003), mas inclui ouverdubs do take um e de outras versões desta mesma composição gravadas em estúdio.
DON’T LET ME DOWN (take 2)
Também foi gravada como ‘garantia’ a pedido de Michael Lindsay Hogg. Não foi usada no filme nem no disco Let it Be, mas aparece de forma editada em Let it Be…Naked. Imagens inéditas da filmagem desse take são usadas num promo vídeo distribuído por ocasião do CD ‘Naked’ em 2003.
GET BACK (take 02)
Já com a presença da polícia pedindo que a gravação fosse encerrada eles tocam a quarta versão de “Get Back” (esta gravação foi lançada oficialmente no terceiro volume da série Anthology, em 1996). Antes Paul comenta: “você está tocando nos telhados novamente, mesmo sabendo que sua mãe não gosta. Ela vai acabar vendo você preso”. Neste take as caixas de retorno de John e George são desligadas, o que leva Paul e Ringo a ‘segurarem’ sozinhos o trecho inicial da canção no baixo e na bateria. O fechamento se dá com a clássica frase de John: “I’d like to say thank you on behalf of the group and ourselves and I hope we passed the audition”.
- Entre sete e dez da noite daquele dia 30 de janeiro de 1969 o engenheiro Glyn Johns mixou gravações (inclusive as tocadas no teto da Apple) no Olimpic Sound Studios do jeito que quis, trabalhando sozinho. No dia seguinte entregou acetatos aos Beatles com o resultado do trabalho.
-
Dois promo films para “Get Back” e “Don’t Let me Down” foram preparados com o objetivo de promover um dos últimos singles lançados pelos Beatles. Em ambos, imagens dirigidas por Michael Lindsay-Hogg, mas de ângulos diferentes dos mostrados em Let it Be – e capturados no rooftop – foram utilizados.
-
Virtualmente tudo o que aconteceu no telhado da Apple durante aqueles quarenta e dois históricos minutos do dia 30 de janeiro, uma terça-feira por volta do meio-dia, estão preservados em filmes e em áudio. Reafirmo minha opinião pessoal: esse material devia ser lançado integralmente em DVD (com as canções repetidas e tudo) numa edição luxuosa e recheada de extras do filme Let it Be.
-
No dia 31 de janeiro as filmagens de Let it Be chegaram ao fim, assim como o conturbado processo de gravação do futuro disco. A faixa título e “The Long and Winding Road” foram finalizadas na ocasião e dali em diante – pouco mais de um ano depois – era anunciado formalmente o fim dos Beatles. E de uma era.
Por Cláudio Teran