George Harrison

George Harrison: as poucas (e maravilhosas) surpresas do pacote Living In The Material World

Escrevo estas linhas imediatamente após assistir ao primeiro filme “Living in The Material World” e ouvir as faixas do CD bônus com gravações inéditas incluído na deluxe edition do pacote com blu-ray lançado na Inglaterra. O que posso dizer? Em primeiro lugar, que fui tomado de alegria e de… birra. Sim, birra! Alegria porque qualquer material que lance luz à obra de Harrison é sempre um acontecimento para mim, pois mesmo em em vida, George era bastante econômico e cauteloso em relação à sua carreira, lançando poucos discos nos últimos anos e mantendo muita coisa inédita que seus fãs adorariam conhecer trancada a sete chaves.

Então, eu criei, e acho que muita gente também, a maior expectativa em relação ao projeto que está sendo lançado agora, achando que finalmente o baú seria aberto com fartura e conteúdo suficientes para deixar qualquer beatlemaníaco extasiado. Engano. E aí vem a birra. O documentário é interessante, traz algumas imagens inéditas (poucas, a bem da verdade), e não acrescenta nada de muito importante na história de George. Pelo contrário: o ritmo é arrastado, as cenas dos Beatles são manjadas demais e o filme fica devendo mais detalhes, mais ênfase na sua personalidade sedutora, contraditória, criativa e absolutamente ousada como músico e ícone cultural da juventude. Um cara que em meio à afirmação da juventude dos sixties, ousou aprofundar-se numa filosofia que fosse direto ao âmago do ser, no sentido do auto-conhecimento e da verdadeira realização humana, renegando as drogas e a porra louquice como meios de se afirmar como agente transformador da sociedade.

Harrison detestava o estrelato e a mania dos fãs; julgava-se, nos anos finais, um jardineiro que também fazia música. Enquanto músico, queria ser reconhecido por sua arte, e não pela exposição midiática de um mega pop star. Imaginem o que deve ter sido um ídolo pop que tudo tinha às suas mãos e de repente tentou enfrentar a zombaria de quem o achava ‘bitolado’ em religião com a cara e a coragem; imaginem um cara trazendo música indiana, cítaras, acordes dissonantes e letras reflexivas para o imaginário pop; um cara que cantou louvando Deus e imagens profundamente místicas ao mesmo tempo em que seu colega de banda John cantava que “Deus era (apenas) um conceito pelo qual nós medimos a nossa dor” e ganhava o reconhecimento da comunidade politizada do pop!

Esse cara foi George Harrison. E o documentário pisa na bola em tratar dele com certa neutralidade, passando a mão em sua cabeça como se ele fosse um menininho bom que foi pouco notado, como se ele tivesse sido apenas um cara tímido que conquistou uma brechinha de atenção no meio de duas sumidades criativas, John e Paul. George era peça fundamental e decisiva nos Beatles, e não apenas um mocinho discreto. Ele foi o cara que fez com que os Beatles fossem atrás de meditações, de novas alternativas filosóficas e que acima de tudo, engrossou a fileira de compositores da banda com idéias e toques musicais com elegância e apuro técnico.

Harrison aprendeu rapidamente o ofício de compor – e aprendeu bem. E mais: possuia um humor afiado, era um artista meticulosamente fiel ao seu coração e uma das figuras mais autênticas do rock and roll em todos os tempos. Além do mais, o documentário abusa de imagens paradas e depoimentos longos e meio desanimados. Ringo e Paul falam bastante, mas não disseram nada de novo. Clapton fala com certa ironia, e fala mais parecendo focar-se mais em si mesmo do que no amigo. Mas a cena em que George, por volta de 1976, assiste a um clip dos Beatles tocando “This Boy” é maravilhosamente encantadora, e seus olhos brilham traindo a sua postura sempre carrancuda de negar o passado. Ali, naquela cena, constatamos que Harrison amava sua antiga banda. As cartas de George para a mãe também são interessantes, mas, enfim… vamos esperar a segunda parte para ver se as coisas melhoram.

Agora o CD bônus: é outro caso de felicidade e ira. Felicidade porque as dez faixas são pérolas do baú de George, com versões acústicas que trazem as canções em sua mais direta tradução, a essência da criação artística despojada de artimanhas da produção final que busca satisfazer as exigências de mercado e da gravadora. Desta feita, “Behind That Locked Door” emociona simplesmente com a base de violão, o vocal afinado de George e o steel guitar de Pete Drake; “All Things Must Pass” sem as cordas e adereços que deixaram a versão oficial um pouco carregada, soa como uma ótima versão de ensaio, bem melhor do que aquelas tentativas de George em fazer com que os Beatles a tocassem no início de 69; “Woman Don’t You Cry For Me”, para mim a melhor surpresa, prova que Harrison era um músico e compositor versátil, criando um número de blues acústico bem mais forte que a versão oficial, também excelente, mas mais voltada para o funk; “Let It Be Me” é um cover brilhante de uma das canções prediletas de George, aqui com uma deliciosa parte de guitarra slide e um delicado arranjo vocal em duas vozes; “Run Of The Mill” é a única conhecida dos colecionadores por aparecer em diversos bootlegs.

O restante das canções é de muito boa qualidade, e aí entra a minha ira: por que tão pouco material? Por que dez faixas apenas, quando se sabe que há muito mais material inédito nos arquivos? A audição das dez faixas faz com que a gente sinta vontade de ouvir muitos outros ensaios, versões e canções inéditas. Porém, mais uma vez, constatamos que as carreiras dos ex-beatles são muito mal geridas no que diz respeito a oferecer aos fãs gravações inéditas. Os lançamentos são muito contidos, rasos, escassos e pouco acrescentam á discografia deles. Os tímidos bônus tracks nos relançamentos da carreira solo de Paul e as eternas coletâneas que Yoko monta de John são prova disso.

Voltando para George: Por que Olivia Arias não monta um box com 4 CDs de material raro? Por que a tour de 1974 não sai em áudio e imagens remasterizadas e oficiais? Onde está um DVD com o show completo da turnê japonesa de 1991? Estas respostas, meus amigos, permanecerão “soprando pelos ventos”, como cantou Bob Dylan, grande amigo de George e que ficou de fora do projeto do Living In The Material World, não dando nenhuma entrevista, inexplicavelmente. O mesmo Dylan que nos últimos anos vem agradando os seus fãs lançando pilhas de material alternativo e inédito. Acho que George e seus fãs mereciam mais, muito mais.

Marcelo Sanches
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