George Harrison

Há 11 anos: George Harrison, o filósofo dos Beatles

Roberto Muggiati é jornalista, viveu a Londres dos Beatles e é dele o livro “A Revolução dos Beatles”, Ediouro, 1997. 

“None of life’s strings can last
So, I must be on my way
All things must pass
Nenhuma das cordas da vida dura
Por isso, vou andando
Tudo passa.”

E o caçula dos quatro – quem diria? – se tornou o filósofo dos Beatles. E também aquele que ousou falar da Morte. George Harrison foi vencido por um câncer que o assolava há três anos e morreu, nesta quinta-feira, na casa de um grande amigo em Los Angeles, ao lado da mulher e do filho.

Mick Jagger perguntava: o que um pobre garoto podia fazer na sonolenta cidade de Londres a não ser cantar numa banda de rock’n’roll? E na adormecida cidade de Liverpool, o que um pobre garoto podia fazer se já cantava numa banda de rock’n’roll e não era Lennon nem McCartney, nem o brincalhão Ringo, mas um mero coadjuvante dos Fabulous Four? Foi o que George Harrison teve de aprender aos poucos, com modéstia e sensibilidade, até descobrir o seu caminho e impor sua personalidade, no plano artístico e humano.

Com sua índole mística, Harrison escreveu (no livro “I Me Mine”) sobre sua chegada a este mundo; “…tentar imaginar a alma entrando no ventre da mulher que morava no número 12 de Arnold Grove: havia todos aqueles balões de barragem antiaérea e os alemães bombardeavam Liverpool…” Como nos Beatles, George mantinha um low profile também em casa, onde (novamente) era o caçula de quatro: os Harrison já tinham dois filhos e uma filha quando ele nasceu, em 25 de fevereiro de 1943. O pai, Harold, tinha trocado a marinha mercante por um emprego em terra, mas não parado: era chofer de um daqueles ônibus de dois andares típicos da Inglaterra. Louise, a mãe, trabalhou numa quitanda até nascer o primeiro filho – os Harrison eram genuínos heróis da classe operária. O sonho do pai era montar uma pequena oficina. Um filho, Harry, era mecânico; outro, Peter, fazia lanternagem. George seria o eletricista e ganhou do pai um jogo de chaves como presente de Natal. Mas sua única ligação séria com a eletricidade acabou sendo a guitarra de 30 libras, um presente – este sim – da mãe.

George já vinha brincando (a sério) com a música desde os 13 anos, quando comprou um violão de segunda mão de um colega de escola. Uma das primeiras canções que o marcou foi “Hong Kong Blues”, a estranha história de um negro americano perdido nas casas de ópio da China e morrendo de saudades de San Francisco. A composição era de Hoagy Carmichael, o pianista e cantor que, com o trompetista Bix Beiderbecke, fez parte daquela primeira geração de brancos que dedicava sua vida à música negra. Três décadas depois, a história se repetia, com jovens brancos americanos e britânicos descobrindo o blues e tentando imitá-lo numa música chamada rock’n’roll.

Aos 17 anos, já de guitarra elétrica em punho, George largava o emprego de aprendiz de vitrinista numa grande loja e partia em turnê pela Escócia com os Silver Beatles, grupo que era o embrião dos Beatles. Resumindo: Paul e George costumavam tocar juntos e trocar figurinhas musicais. Um dia, Paul conheceu John, líder de um grupo respeitado. Mas levou um ano para George conhecer John. Certa noite, os três sozinhos no segundo andar de um ônibus, John o desafiou: “Se toca tão bem quanto o guitarrista da nossa banda, o emprego é seu.” George atacou de “Raunchy” e ganhou o posto. Depois da Escócia, os três embarcaram para a sofrida (depois lendária) temporada em Hamburgo, de onde foram expulsos a pretexto da menoridade de George. Faltava o quarto Beatle e foi Harrison quem ajudou a fechar a contratação de Ringo Starr (com quem haviam tocado em Hamburgo), o que lhe valeu um olho roxo numa briga com um fã do baterista defenestrado, Pete Best.

E assim os Quatro Cavaleiros do Após-calipso adentraram os estúdios de Abbey Road, em Londres, na data histórica de 11 de setembro de 1962, para gravar seu primeiro single (“Love Me Do” e “PS I Love You”). Não aconteceu grande coisa. Quando “Love Me Do” tocou no rádio pela primeira vez, a mãe de George esperou até altas horas, cansou e foi dormir. De repente George subiu as escadas gritando: “Estamos no ar!” O pai ficou furioso porque o acordaram. Tinha de levantar cedo para dirigir o seu ônibus. Harrison lembra: “Tremi de emoção. Ouvi meu trabalho na guitarra e não podia acreditar.” Mas os rapazes estavam condenados ao sucesso, que chegou com o segundo single (“Please Please Me” e “Ask Me Why”). Em pouco tempo, os Beatles eram o maior fenômeno musical do século XX e até extra-musical (“maiores do que Jesus Cristo”, na frase equivocada de John).

Da primeira gravação à última, também nos estúdios de Abbey Road, foram sete anos de amor e ódio, fama e riqueza, e muita loucura puxada a todo tipo de estimulantes, euforizantes e estupefacientes do rico arsenal químico dos swinging sixties, que ficariam conhecidos como uma década de “sexo, drogas e rock’n’roll”. Os rapazes se casaram, Lennon se descasou e foi quando entrou em cena Yoko Ono, a besta negra (mais para o bode expiatório) da dissolução da maior banda de rock de todos os tempos. Harrison comprou um castelo exótico nos arredores de Londres às margens do Tâmisa, perdeu a mulher, Patti, para um de seus melhores amigos, o guitarrista Eric Clapton. Por sua vez, dizem que Ringo pegou seu melhor amigo, George, na cama com sua mulher, Maureen – os dois casos acabaram em divórcio. O segundo casamento, mais tranqüilo, com a mexicana Olivia Trinidad Arias, lhe deu Dhani, o filho que não teve com Patti e sobreviveu aos bons e maus momentos do resto da sua vida.

A importância de George para os Beatles nunca foi devidamente valorizada. São dele alguns dos mais belos e criativos solos de guitarra que se ouvem ainda hoje nos discos dos Fab4. Como compositor – embora eclipsado pela produção maciça da dupla Lennon & McCartney – ele desponta como um dos principais autores do rock. Alguns marcos em sua carreira na fase dos Beatles: “Taxman” (do LP “Revolver”), “Within You Without You” (do “Sergeant Pepper¹s”), “Piggies” e “Savoy Truffle” (do álbum branco), “Blue Jay Way” (de “Magical Mystery Tour”), “Something” e “Here Comes the Sun” (de “Abbey Road”). Particularmente reveladora dos seus métodos de criação é a maneira como foi composta a lírica “While my Guitar Gently Weeps”: “Na época eu tinha um exemplar do “I Ching” – o livro chinês das mutações – que me parecia baseado no conceito oriental de que tudo é relativo a tudo, em oposição à idéia ocidental de que todas as coisas são meramente coincidentes. Resolvi fazer uma canção baseada na primeira coisa que encontrasse abrindo o livro ao acaso. E as palavras que surgiram foram ‘gently weeps’ (‘chora suavemente’).”

Com a separação dos Beatles, George – que havia feito o primeiro LP com o selo da gravadora do grupo, a Apple, a trilha sonora do filme “Wonderwall” – saiu na frente com o primeiro trabalho individual na nova carreira dos quatro. E não fez por menos: foi um álbum triplo, acondicionado numa caixa, “All Things Must Pass”, fortemente influenciado, no conteúdo e na forma, pela adesão de George à doutrina do hare krishna. Teve um sucesso retumbante com a faixa “My Sweet Lord” (caracterizada como plágio, valeu um processo a Harrison, e um prejuizo de milhões). Seu envolvimento com o hinduismo o levou, por sugestão de Ravi Shankar, seu mestre de sitar (instrumento que usou com os Beatles em “Norwegian Wood”), a organizar os concertos beneficentes para o Bangladesh em 1971 no Madison Square Garden de Nova York, um dos primeiros mega-espetáculos engajados do rock.

Nos trinta anos de carreira solo, George Harrison não mostrou a criatividade dos dez anós pós-Beatles de Lennon, nem a musicalidade e aplicação de McCartney (Ringo nem chegou a ser páreo…), mas deixou bons momentos de rock, apesar do trabalho esparso. Em seus 15 álbuns individuais, sempre soube se cercar dos melhores talentos, gravando muitas vezes com Eric Clapton, Ringo Starr e Bob Dylan. Com este, formou no final dos anos 80 uma banda extravagante sob o nome de The Traveling Wilburys, que incluía ainda o falecido veterano do rockabilly Roy Orbison, Tom Petty e Jeff Lynne. Além da religião, seus interesses se dispersaram na produção de discos e filmes e até nas corridas automobilísticas (acompanhou o Circo da Fórmula-1 e dedicou uma canção ao amigo Emerson Fittipaldi). Como produtor, George fundou a gravadora Dark Horse Records em 1974 e os HandMade Films em 1978, produzindo uma série de filmes do “coletivo” de humor Monty Python, entre eles “A Vida de Brian”, que deu uma bilheteria de quase 100 milhões de dólares. (Harrison vendeu a companhia por cinco milhões de libras em 1994 quando ela começou a dar prejuizo.)

Nos últimos tempos, Harrison mostrava um certo amargor com relação ao cenário do rock: “Sabe o que mais me irrita na música de hoje? Ela é toda baseada no ego. Vejam o U2: quanto mais você pula, usa um chapelão, mais as pessoas compram seus discos. Não tem nada a ver com talento. A vantagem das Spice Girls é que você pode vê-las com o som desligado. Quem vai lembrar o U2 ou as Spice Girls daqui a 30 anos?” Já os Beatles “possuíam um valor que vai durar para sempre.” E ainda: “Éramos só um grupo de lunáticos que tomavam drogas e tentavam ser honestos.”

Droga e loucura quase causaram a morte de Harrison em 1999, quando sua casa foi invadida por um maluco, ex-heroinômano, que lhe desferiu dez punhaladas (uma delas passou a uma polegada do coração). Um ano antes, George havia feito radioterapia contra um câncer da garganta. De 2000 para cá, sofreu outra cirurgia na garganta, enfrentou câncer na laringe e nos pulmões e submeteu-se a tratamento para um tumor no cérebro, num hospital suíço. Sinistrólogos de plantão lembram que as chacinas do bando de Charles Manson na Califórnia em 1969 foram inspiradas na canção dos Beatles “Helter Skelter” e falam de uma maldição da música “When I¹m Sixty Four”, sugerindo que nenhum dos quatro vai chegar aos 64 (Paul e Ringo devem estar se cobrindo de amuletos…) Há alguns meses, o produtor George Martin disse à imprensa que Harrison estava conformado com a morte iminente, o que irritou o ex-Beatle.

É complicado especular o que o mais introspectivo dos Beatles estaria sentindo na hora final. Mas uma canção do álbum triplo de 1970, “A Arte de Morrer”, pode dar uma pista, com base na filosofia hindu da reencarnação: “There’ll come a time/ When most of us return here/ Brought back by the desire to be/ A perfect entity/ Living through a million years of crying/ Until you’ve realized the art of dying/ Do you believe?”/ “Vai chegar um tempo/ Em que a maioria de nós volta aqui/ Trazida pelo desejo de ser/ Uma entidade perfeita/ Atravessando um milhão de anos de lágrimas/ Até que você compreenda a arte de morrer/ Acredita em mim?”.

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